A DIVINA PROVIDÊNCIA E A LIBERDADE HUMANA


Sermão pelo Rev. Karl R. Alden


“Eis que estou à porta, e bato; se algum ouvir a minha voz, e abrir a porta,
entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.

(Apoc. 3,20)

A Divina Providência do Senhor é o governo de Seu Divino Amor e de Sua Divina Sabedoria. Este governo é absolutamente universal, porque é também absolutamente singular. Nada, no universo, é demasiado grande para que não possa ser manejado pela força Divina; nem demasiado insignificante para que fique fora de sua direção. “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil?, e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai. E até mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados” (Mateus 10, 29-30).
A Divina Providência não só é o governo do Divino Amor e da Divina Sabedoria, como é também o único governo do universo derivando seu poder de leis que existem desde o início da criação. A criação é uma obra puramente Divina, a que Deus deu a Sua própria substância — o corpo de Seu Amor Infinito moldado por Sua Infinita Sabedoria em um universo finito, onde os usos representativos do reino celeste podem ser preenchidos.
Amor e Sabedoria, agindo unidos, fizeram este milagre da finitude do Infinito, criando o universo visível, em que foram introduzidos o espaço e o tempo. Mas o Divino Amor e a Divina Sabedoria não abandonaram o universo depois de criado; ao contrário, permanecem como sua Alma e Vida. É o seu governo sobre os negócios humanos que se chama Divina Providência. Unidos em Deus, estas duas forças criadoras separam-se quando entram na criação, e dessa forma dão lugar àquele oculto incitamento da Divina Providência para que todo bem se uma à sua própria verdade, e toda verdade ao seu próprio bem. Esta atração é a origem íntima do amor conjugal, e permanece profundamente escondida no desenvolvimento de toda vida.
Mas o Senhor não criou o universo sem um propósito supremo. Esse propósito é que haja um Céu formado pela raça humana — um Céu organizado completamente segundo a forma humana, e que pode crescer em perfeição pela eternidade afora. A perfeição do Céu consiste justamente no fato dele poder perceber cada vez mais completamente a vida do Senhor. Não é, entretanto, a conjunção que provém do influxo de vida na alma humana. Esse influxo opera imperceptivelmente tanto nos anjos como nos demônios. É a vida universal de que o Senhor fala quando diz: “Faz que o seu sol se levante sobre os maus e os bons, e a chuva desça sobre os justos e os injustos” (Mateus 5,45).
Deus e o homem não se conjuntam por esse influxo; nem o homem é elevado ao Céu por ele. É elevado, porém, por um outro influxo que vem por um caminho externo — um influxo de vida que ele pode receber ou rejeitar pelo exercício de seu livre-arbítrio. “Eis que estou à porta, e bato; se algum ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.
Por criação, a criatura recebe dois dons de Deus, duas faculdades sustentadas por Deus — a racionalidade e a liberdade, que tornam possível a sua conjunção com o Senhor. São dádivas gratuitas de Deus ao homem; dádivas que o elevam acima dos animais, e que o tornam uma imagem de Deus. Pois o Amor de Deus pode ser recebido pela vontade da criatura, e a Sabedoria de Deus pode iluminar o seu entendimento. À medida que sua vontade se harmoniza com a Vontade Divina, e que seu entendimento é ilustrado pela Divina Sabedoria, ele vai se tornando mais sábio, mais feliz e mais livre. Assim, o íntimo da Divina Providência consiste sempre em prover para que o Macro-Homo do Céu seja enriquecido por miríades de personalidades variadas e possa, assim, exprimir, cada vez mais, a Alma Divina que está dentro dele.
O ponto de vista característico revelado à Nova Igreja, concernente à Divina Providência, é que ela opera segundo as Leis da Ordem. Assim como existem leis, por toda parte, no universo físico — leis do som, leis da luz, leis da gravidade etc. —, assim também há leis que governam o mundo espiritual do homem, o mundo em que o seu caráter se desenvolve e o seu destino eterno é selado. Sem o entendimento dessas leis, não podemos ter a esperança de descobrir a relação existente entre a Divina Providência e a atuação da liberdade humana.
O grande enigma do universo tem sido este: como pode Deus ser tão poderoso, tão absorvente, tão permanente e, contudo ser ao mesmo tempo tão completamente invisível aos olhos naturais, tão impalpável pelas mãos naturais, tão silencioso aos ouvidos naturais?
Somente com os olhos da fé pode Ele ser visto; somente pelas mãos do amor pode Ele ser alcançado; somente por meio de Sua Palavra podemos ouvir a Sua voz, falando-nos e dizendo-nos: “As palavras que eu vos digo, são espírito e vida”.
Há uma razão profunda, que todos podem compreender, para que Ele seja invisível à luz natural, intocável pelas mãos naturais, silente aos ouvidos naturais. E essa razão vem a ser a preservação da liberdade humana. Se o homem sentisse conscientemente, ou tivesse consciência de todos os dons que Deus lhe concede, sentir-se-ia tão sobrecarregado de obrigações que se tornaria verdadeiramente um escravo; não seria mais livre, nem seria mais humano, mas apenas um mero autômato.
Para evitar isso, Deus faz com que a Sua vida entre na alma do homem de modo absolutamente imperceptível; o homem é completamente inconsciente da presença de Deus em seu interior. Mas para que o homem, fazendo pleno uso de sua própria liberdade, possa convidar o Senhor para entrar em sua vida, (por fora) o Senhor proveu um outro caminho de entrada que passa através da porta do convite consciente do homem: “Eis que estou à porta, e bato; se algum ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.
A vida livre do homem somente poderia existir em um mundo de aparências e, portanto, a criação de um mundo de aparências constitui o Plano Divino para garantir a liberdade humana. O homem é dotado com a racionalidade para ver a verdade que fica por trás dessas aparências. Intelectualmente ele pode conhecer a verdade, e pode ordenar a sua vida de acordo com ela, mas ainda continuará a viver em um mundo de aparências. Nada do que se fizer alterará esse fato, pois as aparências têm uma missão Divina a desempenhar — a missão de dar ao homem a possibilidade de ser livre em sua escolha, embora viva, em cada momento, pelo influxo de vida vindo diretamente de Deus.
Na natureza, esse fenômeno da aparência se encontra em muitas coisas, mas em nenhuma se manifesta mais acentuadamente do que na aparência de que o sol se levanta e se deita. Nenhuma soma de conhecimentos astronômicos pode mudar esta aparência física de que o sol se levanta e se deita; contudo, se quisermos confirmar esta aparência, como os homens o fizeram séculos atrás, grandes falsidades se levantarão, tal como a afirmação, que foi tida por verdadeira antigamente, de que a terra é chata, que há um limite para as rotas terrestres e marítimas, que o sol e as estrelas giram em torno da terra etc. É por uma sabedoria mais elevada que descobrimos o erro de supor-se que o sol se levanta e se deita. Um entendimento mais profundo nos ensina que é o giro da terra e não o movimento do sol que produz esse fenômeno. Contudo, por maior que seja a nossa sabedoria ou por mais eruditos que nos tornemos, a aparência continuará a existir.
Semelhantemente, assim acontece nos domínios da consciência humana. A aparência absoluta é de que o homem vive por si mesmo, que a vida é propriamente sua, que ele é, de fato, o centro de seu pequeno mundo. Somente por uma elevada sabedoria pode ele saber que Deus é o Centro; somente por um entendimento mais profundo da Divina Providência pode ele ver que a aparência, que a princípio tomava como realidade, é o meio empregado pelo Pai Celeste para lhe dar o dom inapreciável da liberdade.
Contudo, por mais convencido que ele esteja da doutrina e da razão da sua vida não ser propriamente sua, de que Deus é a Fonte de toda Vida, e de que ele é apenas um vaso receptivo da Vida; por mais completamente que reconheça essas verdades, nem por isso deixará de existir a aparência de que a vida é verdadeiramente sua. E isso não muda nem quando passa para o mundo espiritual. Pois nos foi ensinado que embora os anjos celestes tenham a mais profunda percepção do modo pelo qual a vida do Senhor flui neles, entretanto sentem-se mais livres do que todos os outros anjos; isto é, a aparência de que a vida é propriamente sua, é mais forte neles do que em todos os outros.
Assim, é através dessa vida de aparências que o Senhor pode conceder à criatura o dom da liberdade genuína e a faculdade da racionalidade. Não há dons parciais; eles são completos, são absolutos, e o destino eterno do homem é determinado pelo uso que faz desses dons. A doutrina ensina que todas as coisas que o homem faz livremente, de acordo com a sua razão, aparecem-lhe como sendo propriamente suas, e depois lhe são apropriadas e permanecem com ele por toda a eternidade.
Ora, assim como o homem no plano natural deve aprender a ver a verdade por trás das aparências em que vive a fim de que possa pôr corretamente em ordem o seu mundo, assim também, espiritualmente, embora lhe pareça que vive por si mesmo, se ele quiser alcançar a sabedoria deve reconhecer que a verdade consiste no fato de que toda Vida vem do Senhor, da Vida Mesma.
O homem foi criado com a faculdade de transmitir as características hereditárias de uma geração para outra; sendo propósito Divino que a raça, desse modo, progredisse sempre de geração em geração, e que não se estabelecesse uma monotonia ou identidade interminável. Mas a mesma estrutura que torna possível a transmissão do bem hereditário, também possibilita a transmissão do mal hereditário. Assim, quando os homens se afastaram do bem e mergulharam no mal, o mal hereditário tornou-se dominante de modo que, hoje, o proprium de todo homem, ou a sua vontade nativa, está no inferno; e a não ser que essa vontade nativa seja mudada e substituída por uma nova vontade procedente do Senhor pela regeneração, o homem não pode ser salvo.
“Mas — podemos exclamar — é justo que alguém seja condenado por males que herdou de seus antepassados?” Seguramente, não! Estes males hereditários não pertencem ao homem pessoalmente; são parte da época em que ele vive, são parte da época em que ele vive, são parte do solo de que ele brotou, são o que são porque os que foram antes dele viveram daquela forma. O homem não é responsável por eles, do mesmo modo que não é responsável pelo seu sexo, por suas características físicas, ou pelo país em que nasceu. É responsabilidade apenas pelo que faz com a liberdade de escolha que Deus lhe deu.
Só a Divina Providência pode manter essa liberdade de escolha. Quando se diz que a Divina Providência se estende até as mínimas particularidades da vida humana, isso significa que não há um único momento em que o homem seja privado de sua liberdade de escolha. Pois embora o homem tenha um hereditário mau, também tem o auxílio Divino do Senhor que modela o íntimo de sua alma para desempenhar um uso específico no Macro-Homo, e que torna possível implantar nele as relíquias do bem que podem ser utilizadas em todos os momentos da vida para equilibrar o influxo do hereditário mau, de modo que o homem, na formação de seu próprio caráter eterno, é sempre livre.
É no mundo dos espíritos, entre o Céu e o inferno, que o espírito se desenvolve, enquanto o homem está sobre a terra. As influências que decidem sua sorte estão em um estado de equilíbrio, divinamente preservado, entre as duas forças do bem e do mal. Estas forças são equilibradas em segredo pelas inescrutáveis leis da Divina Providência. Estas leis trabalham infatigavelmente pela sabedoria do homem que, como dizem os Escritos, “o Senhor guarda como a menina dos Seus olhos”.
Assim, pode-se dizer que o homem é sustentado entre as duas mãos de Deus. Por dentro, a sua vitalidade é sustentada a cada momento pelo invisível influxo da vida em sua alma; por fora, o Senhor bate à porta de sua mente consciente. Aqui o homem tem a liberdade de receber ou de rejeitar o seu Senhor. Isto constitui uma doutrina central da Igreja, que ensina que o Senhor nunca age a não ser pelos íntimos e pelos últimos ao mesmo tempo, pois Ele mantém todas as coisas em conexão. Nos íntimos o homem está junto com o Senhor; nos últimos o homem, pode-se dizer, convida o Senhor para estar com ele. Pois toda conjunção do Senhor com o homem deve ser recíproca; isto é, o homem, de sua parte, deve desejá-la, ansiar por ela; e dar os passos simples que são necessários para assegurá-la. Então o Senhor virá a ele, e ceará com ele, e ele com o Senhor.
Quando dizemos que o homem está junto com o Senhor nos últimos, queremos dizer que, quando o homem lê a Palavra por sua própria vontade, quando vai à Palavra livremente, então nos últimos da revelação ele encontra o Senhor, e ouve a Sua voz. Pois é uma lei da Divina Providência que o Senhor está sempre do lado de fora, batendo à porta da mente do homem, ansioso por um convite para entrar — convite feito livremente e que abre a porta do coração e permite que o trabalho da regeneração comece.
Mas depois da voz ter sido ouvida, a porta deve ser aberta. Que porta pode resistir à batida do Senhor? Somente a porta que se tornou emperrada pelo amor do mal. “Levantai, ó portas, as vossas cabeças, levantai-vos, ó entradas eternas, e entrará o Rei da Glória” (Salmo 24,7). Somente o amor do mal pode levar o homem a aferrolhar a sua porta e mantê-la trancada em face da suave batida do Senhor.
Não é o mal hereditário que barra a porta do céu. A porta não é fechada pelos pecados de nossos antepassados, nem pelo fato de termos nascido no momento da história do mundo em que muitos homens, como os antigos laodiceanos dizem a si mesmos: “Rico eu sou, eu estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e misericórdia, e pobre, e cego, e nu” (Apoc. 3,17).
O que barra a porta são os males que amamos por nossa livre escolha. Entretanto, a palavra “males” aqui empregada, não é a expressão mais conveniente, porque os males, milhares de males, males que se ramificam e põem o homem em conexão com todos os infernos, não poderiam manter a porta cerrada contra o Senhor; pois Ele veio ao mundo para subjugar o inferno, e veio novamente para dar ao homem a liberdade racional. Todo o inferno reunido não tem força suficiente para manter a porta cerrada, a não ser que o homem se junte ao inferno, amando-o livremente.
Para os males que amamos há outro nome. Estes se chamam “pecados”; e “a alma que pecar morrerá”, diz a Palavra. “E quem comete pecado é servo do pecado”. É então o pecado, e não o mal, que fecha a porta ao Senhor; e o pecado é indivíduo; pertence a cada um de nós. Não é um problema da raça, ou da Igreja, e nem mesmo de nossa família. É o nosso problema individual. É o nosso pecado; é a nossa sorte que pende da balança de nossa resposta à Voz Divina. Talvez, nas silenciosas vigílias da noite ouçamos, a princípio fracamente, e depois com vigor crescente, a batida em nossa porta.
E quando a escutamos, e apuramos o ouvido no meio dos confusos sons da noite escura, a Sua voz se torna inconfundível: “Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3,16). “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem” (Isaías 1, 16-17). E a voz torna-se mais clara: “Se pedirdes alguma coisa em meu nome, Eu o farei”. “Ó Senhor, eu creio, ajuda tu a minha descrença”. Então exclamaremos: “Ó Senhor, nós reconhecemos a nossa transgressão, e o nosso pecado está sempre diante de nós”.
Tomamos então a resolução de descobrir os males individuais que estão em nós, para evitá-los como pecados contra o Senhor. Claramente reconhecemos agora que é somente o pecado contra Ele que deve ser evitado, pois é o pecado a única força, em todo o universo, que pode aferrolhar a porta e mantê-la fechada contra o Senhor.
À medida que evitamos os males que reconhecemos em nós, o milagre da salvação vai-se fazendo. A porta oscila e se abre, e o Senhor entra, para ficar conosco nos últimos como Ele sempre esteve presente em nossa alma — para nos abençoar, nos confortar e nos dar a paz. “Deixo-vos a paz, disse Ele, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (João 14,27). “Se vós permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos será feito” (João 15,7).
Amém.

•   1ª Lição:     Deuteronômio 30
•   2ª Lição:     Apocalipse 3
•   3ª Lição:     A. C. 3854