CARIDADE ESPIRITUAL


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Pela tua espada viverás, e servirás a teu irmão. E acontecerá que, quando dominares, quebrarás seu jugo de teu pescoço”.

(Gênesis 27,40)

A religião tem por fim fazer com que os homens vivam em estado de caridade e de boa vontade para com o próximo. O céu consiste mesmo em tal estado de vida. Lá, as inimizades, os ciúmes, as lutas pela primazia são banidas porque o amor mútuo prevalece e, no coração de cada um, não há outro desejo que não seja o de aumentar a felicidade e a prosperidade dos outros. Compreende-se, sem dificuldade, que esse amor universal do próximo é uma condição ideal em que cada indivíduo recebe a maior soma de alegria e de bem-aventurança que lhe é possível receber.
Mas é uma condição que só pode existir entre os anjos, isto é, entre seres humanos que se tornaram perfeitos pela regeneração e de cujos corações todo mal foi expulso. É, portanto, uma condição que não pode ser atingida na terra, onde o bem e o mal estão misturados. Não obstante, é justamente essa condição que constituiu sempre o ideal alimentado pela Igreja Cristã. Era certamente esse o objetivo posto diante dos discípulos pelo Senhor quando lhes disse: “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros, como Eu vos tenho amado, para que também vos ameis uns aos outros. Por isso todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (João 13, 24-25).
Não há espécie alguma de crença cristã, não há mesmo religião pagã abraçada por homens inteligentes, em parte alguma do mundo, que não tenda para o estabelecimento do amor mútuo e da caridade como base da sociedade humana. Não há homem algum abraçando abertamente a vida da religião, que não professe amor ao próximo e que não procure dar provas desse amor por atos de caridade, por ações de sacrifício próprio, mostrando bondade, cuidado e consideração pelos outros. E, no entanto, depois de dezenove séculos de tentativas para praticar e difundir estes simples preceitos do Senhor, dificilmente se pode afirmar que o amor mútuo e o desejo de sacrificar o eu pelo bem-estar do próximo, seja uma característica marcante do mundo moderno, mesmo naqueles países onde a cristandade domina completamente.
A caridade dos primitivos cristãos durou muito pouco tempo. A sua perda tem sido fortemente sentida e enormes têm sido os esforços empregados para revivê-la, para fazer voltar aquelas virtudes simples que fizeram da sociedade dos apóstolos e dos que os sucederam imediatamente, uma espécie de idade de ouro em que o céu estava muito próximo da terra. Tantas têm sido essas tentativas e tão universal tem sido o seu fracasso, que muitos pensadores dos nossos dias chegaram à conclusão de que esses esforços são inúteis. Acreditam mesmo que o amor altruístico é contrário à natureza humana. Procurá-lo como um objetivo prático será, portanto, uma loucura. Procurá-lo como finalidade da vida religiosa poderá ser muito sentimental, mas as pessoas prudentes aceitarão esse preceito com alguma reserva mental, levando em conta as condições da vida moderna, a que julgam necessário acomodar os ensinamentos da religião.
A atitude largamente difundida do moderno pensamento cristão, é que a religião, como concepção teórica da vida, é inteiramente aceitável, mas deve ser mantida no seu próprio lugar. Não se lhe deve dar demasiada importância na direção dos negócios da vida prática. Negócio é negócio; política é política. A religião é uma coisa completamente oposta a tudo isso. O sucesso em qualquer campo da atividade humana tem que ser baseado no reconhecimento prático da existência do mal e do egoísmo na natureza humana, e enfrentar estes inimigos com armas adequadas, isto é, resguardando os nossos próprios interesses. O idealismo sentimental, embora tenha uma lógica impecável e seus princípios sejam muito elevados, só nos trará decepções, porque nos leva a imaginar erradamente que as coisas são como deveriam ser, em vez de reconhecer francamente que são o que realmente são. O homem prático sente desprezo por esse idealismo.
Esta atitude, entretanto, é uma das causas destruidoras da religião. Faz dos que a adotam, verdadeiros hipócritas. Anula toda a força dos ensinamentos religiosos e impede a sua influência de penetrar nos recessos mais profundos do coração. Isso torna impossível, para a religião, mudar essa natureza humana que é tão profundamente oposta ao ideal de caridade da Igreja. Para oferecer salvação, a religião precisa ser sincera, isto é, o amor da religião deve ter seu fundamento nas próprias profundezas do coração humano. Não deve haver coisa alguma oculta que contradiga a confissão dos lábios ou a ação das mãos. A religião para ser eficaz, deve penetrar todos os planos da vida do homem, controlando, realmente, os seus pensamentos e atos em todas as decisões de cada hora, decisões com que o caráter se vai formando lentamente.
A religião não será sincera, nem efetiva, enquanto houver reservas mentais a seu respeito. E isso exige de nós um padrão de vida e de conduta contrário à natureza humana que ainda não se regenerou.  O Senhor ordenou a seus discípulos que se amassem uns aos outros, não com reservas mentais, não apenas depois de haverem cuidado amplamente de si mesmos e assegurado o sucesso de suas ambições pessoais, mas em todas as circunstâncias, de todo o coração e sem pensar no eu. Era por esta espécie de amor ao próximo que eles deviam ser reconhecidos como Seus discípulos. Esta devia ser a prova de seu amor a Ele. Fracassar nisso, significa fracassar no que é indispensável à vida cristã.
Precisamos indagar, rigorosamente, de nós mesmos, se em nossos corações temos posto em execução esse ideal. Uma investigação sincera de nossas intenções e motivos secretos descobrirá o eu como centro de nosso universo. Isso é uma verdade, não apenas para alguns, mas para todos. O amor do eu é o que os homens chamam de “natureza humana”. Nascemos com ele e não podemos escapar ao seu domínio. Assiste-nos então o direito de perguntar: o Senhor nos mandando “amar uns aos outros como Ele nos ama”, não estará exigindo o impossível? Não estará pondo sobre os nossos ombros uma carga que não somos capazes de suportar? Não! Embora seja verdade que a nossa natureza é hereditariamente egoísta, não deixa por isso de ser verdade também, que a natureza humana pode ser mudada pela regeneração e que o meio de efetuar essa mudança é um sincero e ardente esforço para seguir a vida da religião.
Muito singularmente, o caminho ou o meio pelo qual podemos alcançar finalmente o amor do próximo, que o Senhor nos prescreve, é ilustrado na Sagrada Escritura, pela história da fraude e da injustiça que produziu ódio entre dois irmãos! A narração da maneira porque Jacó, tirando partido da avançada idade de seu pai, apresentou-se como Esaú e obteve para si a bênção cobiçada, é muito familiar a todos nós. Foi vestindo as roupas de Esaú e cobrindo as mãos e o pescoço lisos com pêlo de cabrito que conseguiu apresentar-se cabeludo como seu irmão; foi trazendo um saboroso guisado de cordeiro, preparado de modo que tivesse o mesmo gosto da caça preparada por Esaú; foi, finalmente, por meio de mentiras deliberadas (sem consciência), que Jacó convenceu Isaac de que era aquele sobre quem desejava pronunciar a sua bênção. A bênção assim dada era destinada a Esaú, não a Jacó; e, entretanto, quando, com a volta daquele, a fraude foi descoberta, essa bênção não foi anulada.
Esaú foi posto em segundo lugar, depois de seu irmão; a herança da terra foi dada a Jacó e só depois de certo tempo de serviço paciente e de duro combate, Esaú pôde reaver o que era seu por direito de primogenitura. É verdade que a promessa de que finalmente ele prevaleceria sobre Jacó estava contida na única bênção que ainda estava no poder de Isaac lhe dar: “Pela tua espada viverás, e servirás teu irmão. E acontecerá que, quando dominares, quebrarás seu jugo de teu pescoço”.
Isaac significa o amor ao Senhor e a caridade para com o próximo na mente racional. Representa o reconhecimento do mandamento do Senhor para nos amarmos uns aos outros como sendo o ideal do caráter humano, o objetivo racional da vida religiosa. Podemos ver que esse mandamento é verdadeiro e desejá-lo interiormente, mesmo quando toda nossa natureza se rebela contra ele. Podemos reconhecê-lo, mesmo que não saibamos como praticá-lo. Este reconhecimento racional é o primeiro passo essencial à regeneração, embora em si mesmo não seja suficiente. Só isso não muda o nosso caráter. A religião deve pertencer à vida para que sejamos dignos de nosso ideal.
O princípio da caridade na mente racional deve ser substituído pelo princípio da caridade na intenção prática, isto é, no pensamento, na palavra e na conduta, para que a nossa religião tenha vida. O amor ao próximo na mente racional deseja externar-se nas manifestações práticas da vida externa. Nisso reside a satisfação de sua ambições e a obtenção de seus fins.
Esta transição da religião, de uma crença racional para uma realidade prática, é representada pela morte de Isaac e a transmissão de seus bens a seus filhos Esaú e Jacó. Sobre Esaú, o primogênito, se concentra a afeição de Isaac. Ele representa a sincera e cordial expressão do amor ao próximo na vida externa. A princípio, este amor representado por Esaú é um simples e infantil impulso para fazer bem aos outros por uma disposição natural para a bondade. Mas um irrestrito abandono a esses impulsos naturais não realiza os propósitos da religião. Esses impulsos são indiscriminados e servem, da mesma forma, aos bons e aos maus. A maneira de dirigi-los para fins úteis é difícil de compreender, no meio da complexidade de condições da sociedade onde reina o amor de si.
Agir sem julgamento coloca-nos à mercê dos inescrupulosos que tiram partido de nossa inexperiência, levando-nos a cometer erros. A mente racional, por si mesma é incapaz de solucionar esse problema. É por isso que se diz que Isaac estava velho, fraco e cego. Entretanto, o desejo do bem deve existir nessa mente. O esforço para alcançá-lo deve estar aí presente. E deve ser inteiramente sincero. Isaac deseja dar a sucessão a Esaú e pronunciar sobre ele a sua bênção. Jacó só obteve essa bênção, fazendo-se passar por Esaú, dando a impressão de que era Esaú; revestindo-se com a aparência externa de Esaú — as roupas e os pêlos em que Isaac percebeu apenas o cheiro de Esaú, “como o cheiro de um campo que o Senhor tinha abençoado”. O pai idoso ainda estava em dúvida, pois disse: “A voz é a voz de Jacó, mas as mãos são as mãos de Esaú”. Contudo deu a bênção, porque tanto quanto podia perceber, era seu filho mais velho que estava diante dele.
Jacó representa a aceitação intelectual da religião na mente externa, e a aparência exterior de uma vida de caridade em que há, entretanto, muita coisa do próprio eu. O interesse próprio está, porém, profundamente escondido. Não é conscientemente percebido e, portanto, não há hipocrisia. Esta é a única vida religiosa possível para o homem antes de se regenerar. De coração, não se pode fugir do interesse próprio que é inerente à natureza humana. Mesmo quando fazemos o que parece estar de acordo com o mais elevado ideal de amor ao próximo, um exame mais aprofundado revelará a existência de um motivo egoísta, inconsciente, no momento, mas em todo caso interiormente presente. Nós mesmos somos constantemente iludidos pela aparência externa de nossos atos. Iludimo-nos porque a verdadeira qualidade da caridade celeste não é claramente compreendida e a confundimos com alguma coisa que se lhe assemelha na forma exterior.
É esta ilusão que é representada pelo ato de Jacó iludindo Isaac. Isso é inevitável. Ao está em nosso poder impedi-lo. E por esta razão não somos responsabilizados por esse fato. Isso não nos condena porque não procede da vontade consciente de iludir, mas é uma coisa de que somos vítimas. O Senhor não nos torna responsáveis por aquilo que não podemos evitar. Ele não exige de nós mais do que podemos fazer. Só exige que vivamos de acordo com a luz que possuímos, procurando sempre mais luz, reconhecendo sempre os nossos erros, reconhecendo sempre que há em nós males que contaminam todo bem que fazemos.
Levando uma vida assim, Ele pode nos conduzir para a bem-aventurança celeste. Pode desenraizar, gradualmente, o mal de nossos corações e substituí-lo pelo verdadeiro amor ao próximo. Se formos contrários a toda presunção, se nos esforçarmos por ser sinceros, se de fato procurarmos amar ao próximo de coração porque esta é a vontade e a lei do Senhor, então os nossos erros serão vencidos e as nossas faltas perdoadas por um Deus misericordioso. “Se tu, Senhor, notasses as iniqüidades; ó Senhor, quem permaneceria? Mas há perdão em Ti para que sejas temido”.
Se o Senhor não viesse a nós, no meio de nossos males, Ele não nos poderia atrair a Si. É guardando as leis da religião, sinceramente, de acordo com o mais claro entendimento delas que pudermos alcançar, que o Senhor nos poderá salvar; mesmo quando, fazendo isso, nós nos iludimos, tomando por bem alguma coisa que é boa somente na forma externa por estar interiormente maculada pelo amor do eu. Agindo assim com sinceridade, podemos ser levados a uma maior sabedoria e, por fim, a um amor do próximo verdadeiramente celeste.
Quando a fraude foi descoberta por Isaac, ele “estremeceu com um estremecimento muito grande”, contudo confirmou a bênção, dizendo: “Quem, pois, é aquele que apanhou a caça, e m’a trouxe?, e comi de tudo, antes que tu viesses, e abençoei-o: também será bendito”. Deu, porém, outra bênção a Esaú com a promessa de que, por fim, teria o prêmio de sua primogenitura: “Pela tua espada viverás, e acontecerá que, quando dominares, quebrarás o seu jugo de teu pescoço”.
“Pela tua espada viverás” quer dizer que é somente por uma luta contínua que a verdadeira vida religiosa pode ser atingida. Precisamos defender sempre, como nos defendemos da própria morte, o desejo interno de fazer bem ao próximo. Agir, de propósito, por motivos egoístas, é destruir todo bem celeste. Temos que evitar isso de modo absoluto, pois esse pecado não pode ser perdoado, resultando daí a nossa condenação, porque com isso rejeitamos a influência do Senhor em nossos corações. Adotar a atitude de separar as verdades religiosas dos afazeres da vida prática e aceitar um código de conduta contrário a elas é fatal à nossa regeneração. Mesmo quando parecem opostos aos nossos desejos naturais e ambições mundanas, devemos seguir fielmente os ensinamentos do Senhor, fazendo aos outros o que queremos que os outros nos façam. E devemos fazer isso tanto no pensamento e na intenção, quanto na palavra e na ação.
Lembremo-nos, entretanto, de que continuaremos a cometer muitos erros. O amor próprio ainda tentará governar dentro de nós, revestindo-se com as roupas do amor ao próximo para nos enganar. Jacó ainda virá pretendendo ser Esaú; e porque a nossa vista está obscurecida, nós lhe daremos a bênção, supondo que a estamos dando a Esaú, só compreendendo a fraude depois. Contudo, se formos sinceros, embora por algum tempo Esaú sirva seu irmão e tenha continuamente que defender sua vida com a espada na amargura da tentação, ainda permaneceremos fiéis da melhor forma que podemos. E o Senhor secretamente nos preparará para receber d’Ele um amor mais elevado.
Esta luta deve continuar a vida toda. Para adquirir um caráter celeste, precisamos lutar por ele em cada dia e a cada hora. Por isso o Senhor disse: “Eu não vim trazer a paz à terra, mas a espada”. Sem combater diariamente, não podemos manter a integridade de nossa religião ou evitar que ela se torne uma força ou uma pretensão hipócrita. Só como resultado dessa batalha contínua, poderemos alcançar o amor do próximo real, profundo, verdadeiro e espiritual.
Que este amor será dado como coroa da vitória sobre a tentação, está claramente implícito na bênção dada a Esaú por Isaac: “E acontecerá que, quando dominares, quebrarás seu jugo de teu pescoço”.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 27, 1-40
•   2ª Lição:     A. C. 3603