BELÉM


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; porque de ti sairá o guia que há de apascentar o meu povo de Israel”.

(Mateus 2,6)


“E tu, Belém Efrata, ainda que és pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que será o Senhor em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”.

(Miquéias 5,2)

Profundamente escondida no coração de ásperas montanhas da Judéia, afastada dos movimentados caminhos do tráfego, afastada dos movimentados caminhos do tráfego humano, existe uma vila obscura, quase tão antiga como a colina em que está assentada. Ninguém conhece a sua origem, pois os homens percorrem as suas ruas desde o alvorecer da história. As silenciosas encostas que a cercam poderiam contar cenas que aí se passaram nos dias de ouro da Antiga Igreja que nela foi estabelecida entre os descendentes de Noé. Viram o declínio e a queda daquela Igreja, viram igualmente o fim da dispensação judaica e acompanharam o desenvolvimento da Igreja Cristã até os nossos dias.
Poucos, entretanto, são os incidentes desta longa jornada através dos tempos, em que a história desta vilazinha possa ser recordada aos homens de hoje, e pelos quais se pudesse conhecer os amores e as esperanças, as alegrias e os pesares daqueles que aí residiram no decorrer das idades do mundo. Ela está mergulhada no mistério. Permanece pequena e obscura entre as cidades da terra. A pátina de suas habitações guarda avaramente escondido das vistas dos homens o segredo de sua antiga história.
Entretanto, Belém possuía a chave da salvação do homem, e foi fundada e preservada pela Divina Providência para tornar-se o lugar do nascimento do Senhor, a cena do maior de todos os milagres: a encarnação do Deus Infinito. Foi escolhida pela Sabedoria Divina para esse elevado uso desde o começo dos tempos. Através de todas as idades, enquanto as Igrejas, os reinos, os impérios se levantavam e caíam no meio do estrépito das armas e do tumulto das guerras, em meio da pompa e das cerimônias da grandeza e da glória humana, o Senhor foi guiando os destinos dos homens, tendo esta vilazinha como centro em torno do qual tudo mais gravitava, do qual tudo dependia em Sua visão onisciente. Pois os acontecimentos de todas aquelas idades eram destinados a complexa preparação, tanto no céu como na terra, para a descida de Deus aos homens e, portanto, para o cumprimento do objetivo e propósito final da criação.
O Senhor sabia que devia nascer ali; e cuidadosamente preparou todos os acontecimentos para o provimento de todas as coisas essenciais em ambos os mundos, de modo que quando Ele viesse, encontrasse um ambiente que O envolvesse como as faixas da esfera celeste, guardando-O contra o mal, no meio dos homens e dos infernos e, entretanto, podendo ser visto e encontrado pelos simples que Lhe prestariam culto e O adorariam.
Quase toda esta obra de preparação foi feita em segredo. Muito pouco foi conhecido pelos homens a seu respeito através das páginas da história. Só se guarda recordação daquelas coisas que podiam servir para dirigir para lá o olhar expectante e ansioso dos que O amavam, dos que esperavam com fé e paciência a Sua Vinda. E efetivamente foi dito o bastante, em palavras claras e inconfundíveis, para que todos os que procuravam pudessem achar, para que todos os corações humanos, mesmo os que estivessem muito afastados, pudessem ser trazidos ao lugar santificado onde a Criancinha estava.
Para isso, Ele fez com que os acontecimentos que aí deviam ter lugar, fossem representativamente executados, nesse mesmo lugar, mais de dezessete séculos antes de Sua Vinda, para conhecimento dos anjos, somente, visto que ainda não podia ser compreendido pelos homens. E setecentos anos antes do Advento, este conhecimento dos anjos foi revelado ao profeta Miquéias e exposto na linguagem da Escritura como meio apropriado para conduzir os sábios do Oriente ao Seu Senhor e Salvador Infante. “E tu, Belém Efrata, ainda que és pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que será o Senhor em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”.
O antigo nome de Belém era Ephrath ou Efrata, derivado de uma raiz significando “ser fértil ou frutífero”, provavelmente oriunda do hebreu antigo da Antiga Igreja, e foi dado a esta vila muito antes da ocupação judaica. Este nome na representação do drama Divino por Abraão e seus descendentes, foi conservado até a morte de Raquel e o nascimento de Benjamim, quando então é mudado para Belém — “a casa do pão”. Esta mudança do nome pelo qual os homens deviam chamar o lugar do nascimento do Senhor é de profunda significação e contém, no íntimo, todo o assunto do estudo que estamos fazendo.
Como lugar onde o Senhor devia nascer no mundo, Belém representa e significa aquilo em que o Senhor nasce em cada homem. Escondido entre os mais profundos amores do coração humano, mergulhando suas raízes nas primitivas afeições e pensamentos do começo da vida consciente, completamente aparte das paixões que surgem depois, e dos fins e propósitos que, em sua seqüência, constituem toda a história externa de nossa existência, há um lugar secreto, preparado por Deus, em que Ele pode nascer em nós, onde Ele pode ser achado, e para cuja formação, proteção e preservação todo o poder de Sua Providência é empregado. Antes do Advento, Ele aparecia aos homens para guiá-los ao céu e à eterna conjunção com Ele, em Efrata; depois do Advento, porém, só pode nascer em Belém. Se quisermos adorá-l’O, temos que conhecer a significação dessa diferença, pois só assim poderemos procurá-l’O onde Ele pode ser encontrado.
A Doutrina Celeste nos ensina que a cidade de Efrata, desde os tempos mais antigos, significava o meio de conjunção entre o Senhor e o homem, o meio pelo qual a mente finita pode ser levada ao conhecimento do Infinito e, portanto, a adorar a Deus. Este meio, antes do Advento, era o Divino Humano; era o Senhor presente nos céus; era o Senhor influindo através dos céus para aparecer aos homens. Era, enfim, o Senhor enchendo um anjo com a Sua presença, tomando sobre Si, e temporariamente glorificando, a forma e a substância espiritual do anjo, para que os homens, cujos olhos espirituais estavam abertos, pudessem vê-l’O objetivamente diante deles no mundo dos espíritos, pudessem ouvir a Sua voz e aprender os ensinamentos de Sua Palavra e ser, assim, levados à conjunção com Ele e à vida do céu.
Depois do Advento, porém, o meio empregado não era mais o Divino Humano, mas o Humano Divino — o Senhor mesmo, presente imediatamente, sem o intermédio de qualquer forma angélica, sem o aparecimento objetivo diante dos olhos espirituais dos homens. Era uma revelação racional de Sua Forma e Qualidade por meio de verdades interiormente percebidas — o Seu aparecimento naquele Humano que Ele eternamente glorificou por Sua vida no mundo. E este último meio não é Efrata, mas Belém, “a casa do pão”.
Para o Senhor aparecer em Efrata, os homens tinham que estar possuídos de uma afeição interna da verdade, pela qual lhes podia ser dado ver o Anjo de Jeová. Nos tempos antiqüíssimos, todos os homens eram criados nessa afeição, por isso se diz que eles falavam com Deus face a face, que estavam em comunhão diária com os anjos e os espíritos, que estavam conscientemente presentes no outro mundo e que, por isso, eram guiados claramente pela instrução do Senhor quando Ele aparecia diante deles, revestidos com a forma e o corpo finito de um anjo. Mas com a queda, o homem foi expulso desse Éden de aberta consociação com o Senhor e os anjos, ficando nele apenas restos daquela primitiva afeição.
Daí por diante, era só por meio de homens especialmente preparados para entrar em ligação consciente com o mundo espiritual — onde podiam ver o Anjo de Jeová fixar suas palavras e dá-las depois como Divina Revelação à raça humana —, que podia haver comunicação entre Deus e o homem. Em todos os corações em que o Senhor, pelas antigas tradições, pela força da instrução e da educação dada por outros, podia conservar Efrata, ainda que como uma pequena e insignificante vilazinha, no mundo do pensamento e da vida humana, onde pudesse insuflar o primitivo amor da verdade tão completamente destruído pelo dilúvio, para que as palavras dos profetas pudessem encontrar acolhimento favorável e despertar os ecos do passado e, conseqüentemente, abrir os olhos do espírito, a esses, o Senhor podia revelar-Se como o Anjo de Jeová e ser assim visto e reconhecido para construir uma fé salvífica e projetar a luz guiadora de todos os passos da vida.
A Palavra escrita tornou-se, desse modo, o meio pelo qual as coisas que os profetas tinham claramente visto e ouvido, se tornavam conhecidas dos homens, para que as reconhecessem e as obedecessem, ainda que elas mesmas não tivessem a visão espiritual aberta. Mas este meio de revelação não podia durar para sempre. Esta dependência do aparecimento objetivo do Anjo de Jeová diante da vista externa dos profetas não podia continuar eficaz indefinidamente. Foi se tornando cada vez mais difícil preparar homens para desempenhar esse ofício de profeta. Tornava-se cada vez mais difícil para os homens receber com fé e na vida o testemunho das Escrituras. Com o declínio da Igreja, o céu foi se afastando cada vez mais da terra, até que se tornou de todo impossível para o Senhor, influindo através dos céus, vestir-se com a forma espiritual de um anjo para salvar os homens dos males em que tinham mergulhado.
Durante quatrocentos anos, os profetas foram virtualmente desconhecidos. A Palavra tinha sido pervertida a tal ponto que não se podia mais ver Deus nela. A Igreja tinha sido dizimada pela profanação e a hipocrisia de tal forma que quase nada mais restava da fé genuína. O mundo, em conseqüência, tinha mergulhado nas trevas de uma total ignorância sobre o Senhor a vida futura. Os meios pelos quais os homens tinham sido salvos anteriormente não existiam mais e, a não ser que um novo meio fosse estabelecido, nenhum homem mais seria salvo.
O Anjo de Jeová devia dar lugar ao Senhor em Seu Humano Divino, para que Ele aparecesse aos homens, não objetivamente diante de seus olhos espirituais, que tinham caído em profundo sono, mas objetivamente diante de seus olhos naturais, num Humano representativo, assumido no mundo e glorificado para que pudesse, daí por diante, aparecer diretamente sem o intermédio do céu, à mente racional do homem. Este novo médium de conjunção com Deus é chamado no texto da Escritura “Benjamim”, o último filho de Jacó e Raquel, depois de cujo nascimento Raquel morreu e foi sepultada em Efrata, que é Belém.
Raquel representava aquela afeição da verdade interna que pertencia à Antiga Igreja e que permitia ao Senhor influir através do céu para revelar-se aos homens. Mas quando, com o decorrer do tempo, aquela afeição perdeu-se, de modo que os olhos do espírito se fecharam, o Anjo de Jeová não podia mais aparecer e o meio de aproximação, através dos céus, foi cortado; então se diz que Raquel morreu e foi sepultada em Efrata. Antes, porém, ela deu à luz um filho que se chamou “Benjamim” e que representava um novo meio de conjunção estabelecido pelo Senhor e em que foi mudada a qualidade dessa aproximação, ficando para sempre alterado o caráter da ação Divina na direção dos homens. E por causa disso, o antigo nome de Efrata foi mudado para Belém.
Belém — “a casa do pão” — significa, no homem, aquilo que é capaz de receber o Senhor quanto a seu Humano Divino e, portanto, aquilo em que o Senhor pode nascer no íntimo do coração humano. Para o Senhor nascer espiritualmente, para ser recebido quanto ao Seu Humano Divino e não para aparecer objetivamente diante dos olhos do corpo ou do espírito. E para ser visto pela mente racional — para ser vista a qualidade do Seu Amor e da Sua Sabedoria, finitamente compreendida, sentida e conhecida pelos homens.
Nos tempos antigos ninguém podia atingir esta visão objetivo no mundo espiritual e através da instrução dos anjos, isto é, do Anjo de Jeová. Mas depois que o Senhor nasceu sobre a terra, depois que Ele veio para instruir os homens, imediatamente, por meio do Humano assumido no mundo, Ele tomou para Si Mesmo o poder de conceder aquela visão racional sem qualquer manifestação externa por intermédio do Anjo de Jeová. Estabeleceu um novo meio de aproximação para o homem. Este meio nada mais é que o sentido interno da Palavra — a Divina Verdade internamente revelada — a que o homem pode ascender e na qual pode entrar intelectualmente em progressão sempre crescente.
O sentido interno da Palavra, racionalmente compreendido, é agora o meio de salvação, o meio de aproximação a Deus e de entrada no céu. É um aparecimento interno do Divino que substituiu o aparecimento externo, efetuado anteriormente pelo Anjo de Jeová. É uma conversa interna com Deus Mesmo, em Seu próprio Humano Divino, que sucedeu àquela conversa externa por meio de uma forma e imagem representativa, que era a característica de todas as Igrejas anteriores. Para que o Senhor pudesse, com o emprego desse novo meio, aparecer aos homens e falar com eles, embora não pudessem ser introduzidos no mundo espiritual, havia necessidade de ser dada uma nova qualidade ao lugar de Seu nascimento no coração humano. Essa nova qualidade que é designada por Belém, provém do novo médium de conjunção representado por Benjamim.
A diferença entre Efrata e Belém pode ser resumidamente estabelecida assim: Efrata é o aparecimento do Senhor objetivamente, externamente no mundo espiritual, sob a forma angélica, tal como Ele aparecia diante dos profetas e mesmo diante de Seus discípulos no Monte da Transfiguração e depois de Sua Ressurreição. Belém, porém, é o aparecimento espiritual do Senhor na compreensão racional do universo criado e de todas as maravilhas de Sua Divina operação. É uma compreensão interna de Seu Amor e de Sua Sabedoria, concedida através de uma percepção racional das leis estabelecidas no sentido interno da Palavra, o que envolve o sentimento da qualidade de Seu Humano Divino, como veio a nós, e nos falou diretamente, tanto neste mundo como no outro.
Estas leis da vida natural e espiritual estão expostas, hoje, na Doutrina Celeste. Aí podemos aprendê-las. Aí podemos, pelo estudo, chegar a compreendê-las e reconhecê-las como verdadeiras, embora sejam abstratas e difíceis de ser apanhadas pelo pensamento natural. O seu conjunto faz-nos voltar ao reconhecimento do Senhor como um Homem e figurá-l’O, mentalmente, na forma Humana e no aspecto mais perfeito. Mas mesmo esta concepção é apenas representativa. A vinda real do Senhor deve resultar da percepção que só é atingida quando aceitamos as leis agora reveladas como a infalível Palavra de Deus e, com uma fé simples, procuramos por todos os meios ao nosso alcance, ordenar e arranjar a nossa vida de acordo com elas.
Quando fazemos isso, a verdade que é revelada em forma de Doutrina, em forma de preceitos e dogmas, une-se com o bem em nós. E aquele bem que produz a luz dos céus, abre os olhos da nossa mente racional, não apenas para ver o aspecto externo e a forma do Senhor, mas para perceber a Sua qualidade, para sentir o Seu Amor, para sentir alguma coisa do caráter intrínseco de Sua Sabedoria e, desse modo, conhecê-l’O espiritualmente.
Fora do vasto oceano de ensinamentos celestes dados nos Escritos, há muito pouca coisa para ser aproveitada. Uma existência inteira de esforços nos dá apenas a possibilidade de iniciar, simplesmente, a aplicação de nossa fé aos problemas atuais de nossa vida. Só uma mínima parte da verdade que podemos receber sob a forma de conhecimentos intelectuais, é que conseguimos unir ao bem pela prática externa e a experiência espiritual. Contudo, só aqui existe o lugar de nascimento do Senhor em nós, o médium de nossa conjunção com Ele. “E tu, Belém Efrata, ainda que és pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que será o Senhor em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”.
Aquele pouco de nossa fé que somos capazes de praticar em nossa vida, parecendo tão insignificante no meio de tantas coisas naturais e externas que somos obrigados a fazer; aquele cumprimento interno da religião em nossos pensamentos e amores mais profundos, tão afastados das estradas reais ao longo das quais somos obrigados a viajar no desempenho das funções e dos objetivos mais evidentes que ocupam a nossa mente é, não obstante, aquilo que constitui a Casa do Pão de que depende a nossa salvação eterna, e em razão da qual, aos olhos do Senhor, tudo o mais existe.
É Belém Efrata, de onde virá Ele a nós, “Aquele que é Governador do Céu”, o Governador e Rei de todo que viverá em nós depois que tivermos deixado este mundo.
Assim, possamos nós ser dotados com aquela sabedoria do Oriente que nos leve sempre a olhar com expectante ansiedade para este lugar do nascimento do Senhor, e com a coragem suficiente para seguir confiantemente toda estrela do conhecimento recebida através da Doutrina Celeste da Nova Igreja, até que, por sua aplicação e pleno cumprimento, ela nos leve mesmo a Belém e permaneça sobre o lugar onde o Menino Jesus está.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 35, 1-20
•   2ª Lição:     Mateus 2
•   3ª Lição:     A. C. 4594