BASTA A CADA DIA O SEU MAL


Sermão pelo Rev. Hugo Lj. Odhner


“Basta a cada dia o seu mal”.

(Mateus 6,34)

No Sermão da Montanha, o Senhor ensinou a Seus ouvintes as leis de Seu reino eterno, o qual não é deste mundo. Ele estava falando a homens mundanos e corporais, cujas mentes tinham estado absorvidas pelas coisas da vida natural, a pescadores e comerciantes, a lavradores e operários, homens que levavam uma vida pelo menos tão incerta, tão árdua e tão material quanto a nossa, ameaçados pelas sombras da opressão e das ambições rivais, que os confundia e tornava duvidoso o seu futuro. E o Senhor exortava-os a não se inquietarem com as coisas concernentes às necessidades corporais, como o alimento ou o vestuário, mas a confiar em seu Pai Celeste.
“Procurai primeiro o reino de Deus e Sua Justiça”, disse-lhes Ele, “e todas as coisas vos serão acrescentadas.” Apelava Ele para uma confiança mais forte na Divina Providência e para a fidelidade, sinceridade, justiça e consciência pessoal nos pequenos assuntos de seus próprios deveres e usos. E Ele acrescentou: “Não vos inquieteis pois pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”
O homem procura os materiais para as necessidades do dia. Mas o Senhor cria esses materiais para o futuro. É suficiente que o homem trabalhe em cada dia, que faca as tarefas que tem diante de si, que faça frente às tentações e problemas que lhe dizem respeito, que tome as decisões que forem sendo necessárias. Mas deve, também, ter fé que o Senhor amanhã proverá lavradores para a colheita semeada hoje; que lhe dará forças, ou àqueles que entram no seu trabalho para concluir a obra começada hoje; que preencherá as faltas e emendará o erro; e que transformará mesmo as nossas falhas de modo a deixá-las em condição de serem empregadas na construção final do reino de Deus.
Os infernos não empregam outro governo além do medo. Os maus espíritos procuram desencorajar o mais possível as boas intenções nas mentes humanas, despertando o medo de suas conseqüências — medo do trabalho que exigem; medo das responsabilidades a serem assumidas; medo de que aquilo que se faz por sentimento do dever nos torne impopulares, nos exponha à crítica e vá de encontro com os nossos interesses mundanos. Com efeito, os espíritos infernais que estão com o homem apelam para a prudência da própria inteligência do homem e sugerem que é mais fácil seguir a multidão que pratica o mal do que procurar o reino de Deus e a Sua Justiça, que é mais fácil evitar aprender a verdade que tornar-se preso pela consciência e tomar sobre si a cruz da tentação, para seguir o Senhor. Eles procuram afugentar a nossa percepção do que é bom e justo e verdadeiro, levantando o fantasma de um possível fracasso, o medo de que o cumprimento de nosso dever seja superior às nossas forças.
Aqueles que estão dominados por tal terror em relação ao futuro são mencionados pelo Senhor, quando diz: “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o reino de Deus.” (Lucas, 9,62) Estes têm medo de ir para adiante. O sulco do arado parece-lhes demasiado profundo, o trabalho demasiado longo, a colheita demasiado distante !
Não imaginemos que o Senhor desejava que Seus discípulos abandonassem toda a prudência. Ele exortava-os, não à imprudência, mas a que resistissem à ansiedade; não é falta de precaução e de previsão, mas a que tivessem confiança na Providência. É o que se vê claramente nas seguintes palavras com que descrevia as dificuldades que teria de suportar aquele que desejasse ser Seu discípulo:
“Qual de vós, querendo edificar uma torre, não se assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a acabar? Ou qual é o rei que, indo à guerra a pelejar com outro rei, não se assenta primeiro a consultar se com dez mil pode sair ao encontro do que vem contra ele com vinte mil?” (Lucas 14,28 a 31)
Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas! Pensar nas conseqüências é uma característica do homem racional; agir por mero impulso, usar palavras arrebatadas e impensadas é sinal de imaturidade.
Os Escritos nos mostram que um homem de negócios da Igreja age segundo sua própria prudência, embora confie na Divina Providência. Não desanima no infortúnio, nem se ensoberbece com o sucesso, mas pensa no que deve fazer amanhã e projeta ou planeja como deve ser feito. Entretanto, não sente ansiedade — não pensa com ansiedade no dia de amanhã, pois ele sabe estar nas mãos do Senhor. E isto se aplica a todos os usos. A prudência do homem, conduzindo suas convicções com coragem e inteligência, deve ser exercida como um médium, um caminho pelo qual a Divina Providência pode operar. O homem não deve deixar de cooperar com sua prudência no serviço do Senhor. Contudo, ela só é útil quando o homem reconhece as suas limitações, quando o homem reconhece que ele não pode ver além das mais patentes necessidades do dia de hoje e, portanto, não pode discernir os perigos do dia de amanhã, os quais ainda não nasceram. Para indicar a limitação da prudência humana, o Senhor acrescentou: “Basta a cada dia o seu mal.”
Esta expressão — e para a qual converge a Piedade Divina por todas as nossas enfermidades e a Divina Sabedoria que as permite e limita sua virulência — é de aplicação universal imediata. Ela contém no íntimo todas as leis da Divina Providência que governam o mal: permite que certos males apareçam para que possam ser encarados, combatidos e removidos; impede o aparecimento daqueles que ainda não podem ser transformados em bens pelo Senhor (A.C. 6663e, 6489 e 6574e), e modera a influência do mal em geral, de modo que seja facultada a escolha espiritual e mantida a liberdade do homem.
A vontade do Senhor reina em todas as coisas que podem ocorrer em Seu Universo, mas é aplicada diferentemente em cada circunstância. Ele a aplica tendo em vista a liberdade e o bem-estar, tanto natural como espiritual, de cada uma de Suas criaturas. Quando um grupo de homens está num estado comum — como quando, externamente, eles pensam, falam e agem semelhantemente — todos estão dentro da órbita da vontade do Senhor. Contudo, um pode agir de acordo com a Vontade Divina, outro (segundo o bel-prazer do Senhor, um terceiro) segundo a licença ou concessão Divina, e ainda outros podem agir por Divina permissão (D.P. 2296, e A.C. 9940). Isto representa os vários graus do influxo e da recepção da vida do Senhor, pelos quais Seus últimos fins são adaptados aos estados humanos, fins que visam o estabelecimento do reino de Deus — a sociedade universal de usos mútuos, em que todas as coisas da vida humana contribuem para o desenvolvimento final da infinidade dos Céus (D.P 202).
O mal não existe por licença do Senhor, mas existe por Sua permissão. As tentações, infestações, acidentes, infortúnios, e doenças são permitidos de acordo com as necessidades do homem.
Os homens queixam-se constantemente de que suas vidas são perturbadas por males imerecidos; queixam-se de que seus usos aqui na terra, embora pacificamente estabelecidos, são destruídos por acontecimentos e condições não provocadas por eles; queixam-se de que aquilo que pacientemente têm construído é subitamente arruinado pelas ambições egoísticas dos outros, ou por fatos imprevistos fora de seu controle, às vezes por guerras e dissensões, outras vezes pela marcha progressiva das forças sociais ou pela mudança dos usos e costumes.
Somos levados freqüentemente a enfrentar enfermidades, quer pessoais ou sociais, quer naturais ou espirituais. O espírito do homem, em sua lenta peregrinação para o Céu, choca-se contra males e tentações que se precipitam sobre ele sem que tenha tido oportunidade de prevê-los ou reconhecê-los em tempo, e que provocam a sua ruína antes que tenha podido pôr em ordem suas forças de resistência. Aqueles que conhecem a Doutrina sabem que suas vontades, por herança, são más — receptoras das paixões do inferno — e que seus corações gravitam em torno do mal. Contudo, eles não vêem que falham e que os males que os afetam, embora aparentemente não merecidos, são oriundos de suas tendências hereditárias para o mal. Acham que tais males são mais fortes do que podem suportar, que não foram por eles provocados e que, portanto, não devem assumir a responsabilidade de enfrentá-los.
Mas a verdade é que os males são permitidos pelo Senhor na exata medida das necessidades do homem. Em face do seu estado, os males que surgem, como se fossem sem o seu consentimento racional, são tão necessários quanto o pão cotidiano. O homem deve chagar a conhecê-los — conhecer seu aspecto hediondo e seu poder destruidor — para que não adormeça com uma ilusória segurança e estima própria. É necessário que os males embrionários da vontade nativa entrem — mesmo como intenções — na região do pensamento consciente ou da imaginação, para aí serem examinados, atacados e derrotados. Se não forem examinados e se não lhes for oposta resistência, em seu estado primitivo, será necessário que, em algum tempo, eles sejam externados em atos e assim revelados como males, não somente ao próprio portador desses males, mas também diante de testemunhas, para que possam ser reprovados, julgados e separados.
Contudo, “basta a cada dia o seu mal”. O Senhor nunca permite que todos os males do homem — o mal total de sua vontade hereditária, as cobiças acumuladas das crueldades e paixões de todas as gerações passadas — venham à superfície. Essas coisas do proprium sensual, da vontade nativa são conservadas encobertas, escondidas, veladas (A.C. 8806 e 8945f). Suas hediondas possibilidades, sua natureza bestial, são guardadas fora da investigação e compreensão próprias do homem. Como um todo inconsciente ou dormente, o homem sente apenas o seu impulso geral, como um peso que ele arrasta, opondo-se ao seu progresso espiritual. Somente quando o homem tem possibilidade de resistir livremente é que o Senhor permite que alguma afeição má se externe como intenção consciente ou ato que possa ser julgado ou confirmado, de acordo com a escolha do homem.
O Senhor imediatamente, ou mediatamente, por meio de espíritos e anjos, equilibra ou restringe os males que devem ser externados e permite que apareça apenas o suficiente para servir ao progresso do homem, de idade a idade, de estado a estado, de esforço a esforço.
O bem não pode ser apropriado pelo homem da Igreja espiritual, a não ser que ele veja e evite o mal. De outro modo, o bem pareceria ser do eu, e não, como é o caso, da presença do Senhor e de Seu influxo através do Céu e da Palavra.
Os males externos começam a aparecer nas crianças quando elas estão prontas para receber ordens e ser instruídas. Então aparecem os males suficientes para seu dia, para sua luta. E à medida que a instrução progride e a mente se torna racional inteligente, males cada vez mais internos e escondidos vão aparecendo e se tornando conhecidos. A luta é então transferida para o campo dos motivos, para fins morais de uma espécie mais sutil. E quando a regeneração começa, esses motivos são purificados e provados pelas tentações do espírito, pelas pesquisas do coração. Cada má afeição, ou cobiça, ou ilusão que é vencida, alarga a herança em que o espírito pode entrar e robustece o amor ao Senhor e ao próximo com todas as virtudes sobre as quais eles repousam, possibilitando ao homem a escolha de sua eterna morada com todos os estados de caridade, e usos, e paz, e sabedoria.
Mas mesmo quando a vida terrena acabou e o espírito regenerado achou sua morada, a pequena parte de si mesmo que ele venceu — pela miraculosa misericórdia Divina — é apenas uma delgada camada do solo redimido sobre o qual seu futuro progresso deve ser construído. Quanto ao resto — o seu proprium, a sua vontade hereditária—, é tão negra e odiosa como a dos verdadeiros demônios.
Pela misericórdia do Senhor isso fica escondido, coberto, condenado pelo próprio espírito, e assim não pode ser uma parte de sua vida real. “Algumas vezes acontece que os que são salvos desejam ser elevados a um céu mais interior do que o de seu próprio grau e extensão do bem, acreditando que poderiam assim alcançar uma felicidade ou uso maior” (A.C. 8945). Em face desse desejo, lhes é dada permissão para irem ao céu que almejam e que na é o que lhes convém. Começam logo a sentir-se atormentados. Tornam-se então conscientes de certos males e falsidades que nunca tinham notado em si mesmos. Impurezas e corrupções que — à luz de uma esfera inferior e através de um bem mais grosseiro — não tinham sido percebidas, começam a manifestar-se: coisas que eles nunca combateram, nunca tinham vencido, nem poderiam jamais vencer.
Perturbados e desfigurados eles se apressam a voltar à sua situação anterior, encontrando a tranqüilidade de que necessitam. Então, agradecem ao Senhor que haja muitos céus — céus mesmo para pessoas como eles. Compreendem que, se o Senhor, por uma força onipotente, não os conservasse continuamente afastados dos males de sua corrupta vontade e se o Senhor não ajustasse suas responsabilidades aos males suficientes para cada dia de luta, sua sorte seria como a dos demônios no inferno. Compreendem que, a não ser pela forca que lhes é dada pelo Senhor dia a dia, e a não ser pela luz da verdade ajustada à sua capacidade, nada haveria neles para resistir ao mal.
Não obstante, a perversidade do homem é tal que ele se acovarda diante dos males que o amanhã pode trazer e assim excede a medida de males que deve suportar hoje. Está revelado (D. 3624, 3628) que maus espíritos de muitos tipos instilam tais ansiedades nas mentes do homens, especialmente nas dos que mantêm pouco contato com outros. Esses espíritos procuram manter o homem em reflexão ou meditando sobre coisas externas, sobre assuntos de dinheiro, de roupas, sobre o que possam pensar a seu respeito e sobre possíveis más interpretações de seus atos, ou ainda sobre questões que estão fora do seu controle e sobre as coisas más que podem ocorrer. Tudo isso com o propósito de insinuar sugestões perturbadoras — ansiedades, aborrecimentos, cobiças. É como se os demônios soubessem que a única força do inferno reside na ignorância do homem. Sobre esta podem eles operar, para reduzi-lo ao medo, à compaixão de si mesmo, à melancolia, que contaminam sua mente racional e afastam a ilustração de seu uso. Tais estados de solicitude pelas coisas futuras fazem parte das tentações naturais.
Mas o mal só pode ser derrotado por meio das tentações espirituais. Essas tentações vêm ao homem quando ele age ou fala contra a consciência ou contra a caridade (A.C. 986). Elas quebram os males e as falsidades e produzem na mente do homem o horror contra eles. Tais tentações são acompanhadas por um desespero de salvação, um sentimento como se o homem tivesse o poder de pensar por sua própria fé, como se fosse imerso nos males e pensamentos escandalosos e lhe fosse cortada toda e qualquer comunicação com o céu.
O homem não conhece o futuro. Não sabe o que vai pela sua mente interior; não sabe que o Senhor está continuamente presente nas tentações e por meio de esferas angélicas defensoras as dosa segundo a força e resistência que encontra; não sabe como o Senhor separa os bens dos males e as verdades das falsidades; não sabe que o Senhor só permite as tentações quando haja males que possam e devam ser evitados e abominados e quando o homem já dispõe de bens e verdades que possam fornecer as armas para a luta empreendida pelos anjos em seu favor.
O Senhor luta, assim, em favor do homem e, durante o tempo da luta, vai sustentando-o com alimento e bebida espirituais, que são os bens e as verdades do Céu, os quais, então, são unidos n interior do homem. O espírito do homem é alimentado com maná do Céu e com água tirada do rochedo. O espírito é libertado da ansiedade pelo dia de amanhã, é introduzido no estado de consolação — um estado feliz e sincero. A esperança e a confiança no Senhor, que então nascem no coração do homem, são as forças de combate do interior, pelas quais é dado o poder de resistir (A.C. 6097).
Não somente o Senhor dosa o mal “bastante para cada dia”, mas também provê o maná do Céu, que é sentido pelo homem como esperança e confiança. Esse alimento espiritual “bastante para cada dia” só é dado, porém, àqueles que procuram o reino de Deus e a Sua justiça. Ele não pode ser armazenado. Como o maná no deserto, ele se derrete e desaparece quando o sol esquenta e a prudência humana começa suas árduas tarefas. Como o maná bicha e apodrece quando guardado para o dia seguinte, nossa esperança e confiança transformam-se em confiança própria e fatalismo, isto é, num veneno para a nossa alma. A esperança e a confiança na Divina Providência devem ser renovadas cada manhã, devem vir como o orvalho sobre Israel. Não devem tomar o lugar do trabalho do homem, mas não necessárias para fortalecê-lo na execução de sua tarefa, quer na paz, quer na luta.
Diz-se que o maná não pode Senhor armazenado. Isso é verdade em relação à mente natural do homem. Aí o maná não pode Senhor armazenado, porque se corrompe em contato com evocações de prazeres naturais e a feições egoísticas. Mas, num certo sentido, pode ser armazenado na mente interna, onde os tesouros do Céu, chamados restos, são guardados. São a esperança e a confiança da infância inocente, usadas pelas esferas angélicas para dosar nossos males na vida futura. É por meio de tais restos da aurora de nossa vida sobre a terra que o mal é restringido até se tornar somente “bastante para cada dia” de nossas tentações. Mesmo nos maus, que recusam receber qualquer esfera angélica, esses restos são usados para temperar e moderar suas faltas e paixões e impedir que sua perversão aumente.
Os homens oram constantemente, pedindo ao Senhor que os poupe das provas da tentação. Contudo nós não somos levados à tentação pelo Senhor; a tentação é provocada pelo mal, pela ansiedade, pelos temores indignos. Entretanto o Senhor aceita a nossa súplica para diminuir o nosso sofrimento, tanto quanto confiamos n’Ele e aceitamos a ilustração e a força necessárias para vencer. Essa confiança resulta de uma fé em Suas próprias promessas, em Sua Doutrina Celeste. É essa fé somente que pode exaltar e purificar nosso amor até que — no dia da prova — seja expulso o nosso temor.
Amém.

Lições:   • Êxodo 16, 13-26
• Mateus 6, 24-34
• A. C. 8478, 3-4