AS RUAS DE JERUSALÉM


Sermão pelo Rev. Norberto N. Rodgers


“Assim diz o Senhor dos Exércitos: Ainda nas praças de Jerusalém habitarão velhos e velhas, e cada um terá na sua mão o seu bordão, por causa da sua muita idade. E as ruas da cidade serão cheias de meninos e meninas,
que brincarão nas ruas dela”

(Zacarias 8, 4-5).

Os tristes remanescentes dos judeus da Babilônia encontraram-se diante de uma difícil tarefa quando, finalmente, terminaram os anos do seu cativeiro. Os poucos fiéis que não se tinham deixado absorver pelo povo em cujo meio viveram como escravos, esforçando-se por conservar sua personalidade, apegando-se — mesmo nas horas mais negras — à esperança de que Jeová se lembraria da aliança feita com seus antepassados, esses poucos, atenderam alegremente ao chamado para regressar à sua terra natal.
A sua alegria teve, porém curta duração. Quando chegaram a Canaã viram que ela não era mais uma terra de promissão. Judá estava desolado. Suas cidades tinham sido destruídas pela guerra e seus campos outrora férteis, depois de tantos anos de abandono estavam infecundos ou cobertos de ervas daninhas. A tarefa de reconstruir Jerusalém e as outras cidades, e de repor os campos em condições de produzir, era enorme e, dados os poucos recursos de que dispunham, parecia impossível. Como poderiam ter esperanças de sobreviver onde não havia alimento e onde ficariam indefesos tanto contra os animais selvagens como contra seus vizinhos, manifestamente hostis? Como poderiam ter esperanças de chegar a pôr ordem no caos que tinham diante de si? Com que fim seria isso tentado?
Foi nessa época que Zacarias, o profeta da restauração, elevou a voz descrevendo a cidade que devia ser construída e dando a conhecer ao povo, quase desesperado, a esperançosa promessa do Senhor dos Exércitos. Era uma promessa que trazia a certeza de que Deus não esquecera o seu povo. Era uma promessa de que um novo estado estava por vir. Era uma promessa de que haveria a paz, a segurança e a prosperidade que o povo tanto desejava desde o tempo de Salomão. Era uma promessa de que haveria abundância para os que haviam implorado cheios de desespero. Era uma promessa de liberdade, de alegria e de bem-aventurança. Sustentados por essa promessa, os remanescentes dos judeus prosseguiram em sua tarefa para que fossem cumpridas as palavras:
“Assim diz o Senhor dos Exércitos: Ainda nas praças de Jerusalém habitarão velhos e velhas, e cada um terá na mão o seu bordão, por causa da sua muita idade. E as ruas da cidade serão cheias de meninos e meninas que brincarão nas ruas dela... Se isto será maravilhoso aos olhos do resto deste povo naqueles dias, sê-lo-á por isso também maravilhoso aos meu olhos?... Eis que salvarei o meu povo da terra do Oriente e da terra do Ocidente; e trá-los-ei, e habitarão no meio de Jerusalém; e me serão por povo, e eu lhes serei a eles por Deus em verdade e em justiça” (Zacarias 8, 4-8).
A história da restauração judaica é simbólica do estabelecimento de uma nova Igreja, quando a anterior caiu presa do influxo do inferno e foi devastada. No fim de toda Igreja, dizem os Escritos, o Senhor prepara os seus remanescentes constituídos por aqueles que ainda O reconhecem e possuem alguma caridade, para confiar-lhes uma nova revelação e dar-lhes a tarefa de iniciar o estabelecimento de uma nova Igreja. Esta tarefa imensa é, realmente, uma tarefa sobre-humana. Não fossem eles Divinamente assistidos e dirigidos, e não poderiam realizá-la. Não fossem eles Divinamente encorajados e sustentados, e não poderiam prossegui-la.
Assim como os judeus no trabalho da reconstrução de Jerusalém foram assistidos e dirigidos pelo Senhor, assim como eles foram encorajados e sustentados, assim também foram os discípulos assistidos e dirigidos, encorajados e sustentados no trabalho de estabelecer a Igreja Cristã; e assim também nós somos, nos dias que correm, assistidos e dirigidos, sustentados e encorajados no trabalho de estabelecer a Nova Igreja, de construir a Nova Jerusalém.
De fato, o estabelecimento de uma Igreja é uma obra Divina em que o homem pode não acreditar; mas, visto que a Igreja é estabelecida em favor da humanidade, para levar os homens ao reconhecimento do Senhor e a uma vida de acordo com a Lei Divina, foi determinado pelo Senhor que eles tomem parte no seu estabelecimento. Ao homem foi, por isso, confiado o trabalho de evangelizar a Palavra e de executar os usos externos da Igreja. Por este meio uma Igreja é formada no mundo e no próprio homem — uma Igreja que pode ser vivificada pela presença do Senhor, e assim tornar-se a Igreja do Senhor estabelecida na terra. Neste trabalho, o homem é assistido por um influxo de vida do Senhor, que lhe dá poder para agir, querer e compreender. Neste trabalho o homem é dirigido pelas verdades da Palavra para que seus esforços não sejam dispersivos e vãos.
Nesse trabalho o homem é encorajado e sua determinação é sustentada por uma antevisão do fim pelo qual está se esforçando, e pela confortadora promessa de que o objetivo em vista será atingido, a despeito de todas as dificuldades. “Ainda nas ruas de Jerusalém habitarão velhos e velhas, e cada um terá em sua mão o seu bordão por causa de sua muita idade. E as ruas da cidade serão cheias de meninos e meninas que brincarão nas ruas dela”.
A qualidade de uma Igreja, que é o interno que a forma, depende da natureza de sua revelação. Por este motivo se diz que uma Igreja é representativa ou real; representativa, se o Humano do Senhor é revelado em uma forma representativa; real, se o Senhor é revelado como um Homem Divino. Por esta razão também se diz que uma Igreja é de qualidade celestial, espiritual ou natural; racional, moral ou sensual. Mas embora a qualidade de uma Igreja, ou seu estado interno, faça a Igreja, essa qualidade não constitui o todo da Igreja, nem é suficiente para estabelecê-la. Deve haver aquilo que constitui a Igreja, que fornece a seu interno, um externo receptivo. Este externo é fornecido pelos homens, pois assim como os anjos constituem o Céu, os homens constituem a Igreja.
Além disso, o estado de uma Igreja depende da relação entre seu interno e seu externo; isto é, o estado de uma Igreja depende da presença ou ausência do seu interno em seu externo.
Na medida em que os homens da Igreja se voltam para fora e desrespeitam as verdades ensinadas na Palavra, nessa mesma medida a Igreja entra em estado de declínio. Ao contrário, na medida em que os homens da Igreja procuram a Palavra para ilustrar-se e, por uma vida de estudo e aplicação, abrir o entendimento e a vontade para receber as coisas da Palavra, nessa mesma medida torna-se bem-aventurado o estado da Igreja.
Devido a isso, o nosso texto, descrevendo o estado ideal da Nova Igreja, que estamos nos esforçando por alcançar, salienta duas coisas: as ruas da cidade, e os que a habitam. Por “ruas da cidade” estão representadas as doutrinas da Igreja, e pelos habitantes, a qualidade dos homens da Igreja quanto à inteligência e à sabedoria.
Uma Igreja, e especialmente a Nova Igreja, é comparada a uma cidade, porque em uma cidade estão concentradas as casas em que os homens moram, e na Igreja se encontram em abundância as habitações espirituais dos homens. Estas habitações espirituais são os bens e as verdades que protegem e abrigam o seu espírito. Na cidade estão centralizadas as várias ocupações e empregos naturais do homem que constituem os seus usos para a sociedade, sendo assim facilitada a sua execução. Na Igreja são centralizados os usos espirituais da caridade e do amor, e a sua execução é assim facilitada. Na cidade há centros de ensino e bibliotecas, cortes de justiça e lugares de divertimento. Na Igreja há a Palavra que é uma biblioteca da Divina Verdade pela qual se dá instrução sobre as coisas espirituais, pela qual se fazem os julgamentos espirituais, e pela qual o espírito do homem se deleita e repousa. Na cidade há necessidade de ruas de ligação e intercomunicação pelas quais os homens passam para ir às suas casas e lugares de negócios, aos lugares de educação e de administração da justiça, e aos lugares de divertimento. Na Igreja há necessidade de doutrinas de ligação e intercomunicação que, como as ruas, levam os homens aos bens da vida e da caridade, e às verdades que instruem, julgam e deleitam espiritualmente. Sem doutrina, então, a Igreja não pode existir, como não pode existir uma cidade sem ruas.
Doutrina significa ensinamento. E, no sentido mais elevado, a Doutrina da Igreja é o ensinamento Divido do Senhor na Palavra. Pois é a Palavra, isto é, a Verdade Divina da Palavra, que ensina o homem sobre o Senhor e Sua Divina atuação, e que o conduz ao reconhecimento do Senhor, e à vida pela qual se efetua a conjunção com Ele. Ou, em outras palavras, é a Palavra que ensina ao homem como deve viver para que possa receber os dois essenciais da Igreja que são o amor e a fé no Senhor (pelo Senhor).
Mas a Palavra, como é em si mesma, nada pode realizar. A Palavra, como é em si mesma, não pode ensinar o homem, nem guiá-lo às coisas essenciais da Igreja — é como um caminho intransitável ou uma rua sem luz. Para que ela possa realizar seu propósito, para que possa ensinar a guiar os homens, a Palavra precisa ser compreendida. E somente quando o homem compreende os ensinamentos da Palavra é que ele se torna capaz de dizer com o Salmista: “A tua Palavra é uma lâmpada para os meus pés e uma luz para o meu caminho” (Salmo 119, 105).
É por meio da Doutrina que o homem alcança o entendimento da Palavra e progressivamente o aumenta. Esse entendimento não é alcançado por meio da Doutrina da Igreja que é a Palavra, porque é justamente isso que precisa ser compreendido, mas por meio da Doutrina da Igreja que é tirada da Palavra. “A Palavra, na letra, não pode ser compreendida senão por meio de uma Doutrina feita segundo a Palavra por um homem ilustrado; pois no sentido da letra foi acomodado à concepção dos homens, mesmo dos homens simples; é por isso que a Doutrina tirada da Palavra lhes servirá de archote” (N. 254). É claro, portanto, que a Palavra não é a doutrina única da Igreja. Uma diferenciação deve ser feita e conservada em mente.
Nesta ordem de idéias, a Palavra pode ser chamada a Doutrina Genuína da Igreja. Ela procede de Deus e, portanto, é constante, Divina e infalível.
A doutrina tirada da Palavra, por outro lado, pode ser chamada simplesmente, a Doutrina da Igreja. É formada pelo homem por meio do seu entendimento das verdades individuais da Palavra. É formada pelo homem, reunindo as verdades da Palavra, comparando umas com as outras e esforçando-se por descobrir o seu alcance e sua aplicação. E como o entendimento do homem, individual e coletivamente, está constantemente mudando, e é limitado e cheio de falsidades, a Doutrina da Igreja tirada pelo homem da Palavra é, semelhantemente, mutável, limitada e falível.
Especialmente, no começo da Igreja, a Doutrina tirada da Palavra é muito imperfeita. Mas com o tempo, à medida que os homens da Igreja, como um todo, progridem no amor ao Senhor e na fé e, portanto, na ilustração, a doutrina que tiram da Palavra vai se tornando cada vez mais perfeita e genuína, cada vez mais conforme com a Doutrina Genuína da Igreja. Não importam, entretanto, as imperfeições que possa ter a doutrina da Igreja tirada da Palavra pelos homens; de qualquer forma, ela conduzirá ao genuíno entendimento das verdades da Palavra, se houver o desejo de compreendê-la e de ser guiado pelo Senhor. Porque, então, as coisas que constituem a doutrina da Igreja, em seu conjunto, serão como as inúmeras ruas e travessas que conduzem às artérias principais do tráfego. Se não houver, porém, o desejo de compreender e de ser guiado; se, pela inércia mental, não houver interesse pela Palavra ou se, pelo amor próprio, são tiradas da Palavra somente as doutrinas que dão satisfação ao eu, então as coisas doutrinais da Igreja serão semelhantes aos becos sem saída que não conduzem a parte alguma, ou como um labirinto em que o homem se perde.
Pelo fato da doutrina da Igreja ser destinada a nos fazer compreender as coisas ensinadas na Palavra, ela é de duas espécies; porque o que é ensinado na Palavra se refere ao bem e à verdade, à vida e à fé. Portanto, na Igreja deve haver doutrinas da fé e doutrinas da caridade; isto é, deve haver verdades da doutrina pelas quais o homem é conduzido a uma fé verdadeira e deve haver bens da doutrina pelos quais o homem alcança uma vida de caridade. Na realidade, se não houver na Igreja a doutrina de vida ou de caridade, não poderá haver nela qualquer doutrina verdadeira.
Em relação a isso, os Escritos nos ensinam o seguinte:
“O que é doutrinal não faz a Igreja, se o que é doutrinal não concerne à caridade, tanto em geral como em particular. Neste caso a caridade é o fim, e pelo fim é evidente a qualidade do que é doutrinal quanto a ser ou não da Igreja” (A.C. 809).
“O que é doutrinal não faz o externo, ainda menos o interno (da Igreja)... mas é a vida de acordo com as coisas doutrinais, todas as quais, quando verdadeiras, referem-se à caridade como seu fundamento. Qual é o uso do que é doutrinal, a não ser ensinar como o homem deve ser?” (A.C. 1799)
“Demais, aqueles que estão nas meras coisas doutrinais da fé, e não nos bens da vida, não podem estar senão na fé persuasiva, isto é, nos princípios preconcebidos, tanto falsos como verdadeiros; conseqüentemente, devem ser mais estúpidos do que os outros” (A.C. 3428).
Uma vez que as coisas doutrinais da Igreja têm relação tanto com a fé como com a caridade, elas têm que ver também com a inteligência e a sabedoria. Pois “inteligência é conhecer e compreender as verdades Divinas e depois ter-lhes fé; e sabedoria é querer e amar estas verdades, e por isso viver de acordo com elas” (A. C. 9943).
Quando, portanto, o homem não possui as verdades da fé, não pode ser inteligente. Mas quando, por meio da doutrina, alcança o entendimento das sublimes verdades da Palavra, e por isso obtém a verdadeira fé, então se torna inteligente e seu entendimento eleva-se à própria luz do Céu. Por outro lado, enquanto o homem está nos males da vida, não pode ser sábio. Mas quando, por meio da doutrina e de sua aplicação à vida, confirma as verdades de sua fé e entra na vida da caridade e ama ao Senhor, então está agindo com sabedoria pelo Senhor.
Além disso, enquanto o homem confia em si mesmo, não pode ser nem inteligente nem sábio. Se o homem quer fazer algum progresso espiritual, é de capital importância que confie decisivamente no Senhor, e nos conhecimentos do bem e da verdade da Palavra. Tal confiança eleva o homem; é como um bordão que o sustenta enquanto anda, que lhe dá forças para seguir na direção apontada pela doutrina, e que lhe dá a possibilidade de alcançar a inteligência e a sabedoria. São estas as coisas de que se fala no texto escolhido para tema deste sermão. Pois o elevado estado de inteligência e de sabedoria na Igreja, isto é, naqueles que são da Igreja, e que é atingido por meio da doutrina, é representado pelos velhos e velhas que habitarão nas ruas e nas praças da cidade. “Ainda nas praças de Jerusalém habitarão velhos e velhas, e cada um terá em sua mão o seu bordão por causa de sua muita idade”.
A doutrina, entretanto, conduz o homem da Igreja, não somente à inteligência e à sabedoria, mas também aos estados de prazer e de alegria. Pois o homem que é instruído nas coisas doutrinais, e que vive de acordo com elas, recebe sempre novas afeições, é conduzido sempre a novas verdades, a novas aplicações da verdade, e a novas maravilhas do Senhor. Estas deleitam e alegram sua mente, divertem-no e dão-lhe o sabor da juventude; por isso o nosso texto diz: “E as ruas da cidade serão cheias de meninos e meninas que brincarão nas ruas dela”.
Tal como os remanescentes dos judeus, nós, da Nova Igreja, podemos também perder a coragem. Podemos sentir que é uma tarefa desesperadora tentar construir a Igreja com os poucos recursos que possuímos. Podemos sentir que as forças opostas que nos embaraçam, são demasiado grandes para serem vencidas por nós. Podemos sentir que o estado de inteligência, de sabedoria e de prazer que é prometido no texto em estudo, jamais será alcançado. Podemos sentir que jamais venceremos as malignas influências que nos cercam e as influências de nosso hereditário. Podemos sentir que não somos capazes de aplicar em nossa vida cotidiana as doutrinas que aprendemos — embora muito desejemos fazer —, e que, portanto, nunca alcançaremos o nosso objetivo de vir a ser da Nova Igreja.
Mas ainda que sejamos tentados, ainda que percamos a coragem, não devemos permitir que o desânimo nos afaste de nosso propósito, nem permitir que o desespero nos paralise a ação. O Senhor prometeu que a Cidade Santa será construída. Prometeu que habitaremos nela. Mas isso é uma promessa Divina que não poderá ser cumprida, se não nos esforçarmos diariamente para fazer a nossa parte, empregando o melhor de nossas possibilidades com toda sinceridade e humildade. É a esse respeito que o Senhor fala nas palavras do profeta:
“Assim diz o Senhor dos Exércitos: Ainda nas praças de Jerusalém habitarão velhos e velhas; e cada um terá na sua mão o seu bordão, por causa de sua muita idade. E as ruas da cidade serão cheias de meninos e meninas que brincarão nas ruas dela... Amém. Se isto será maravilhoso aos olhos do resto deste povo naqueles dias, sê-lo-á por isso também maravilhoso aos meus olhos?... Eis que salvarei o meu povo da terra do Oriente e da terra do Ocidente; e trá-los-ei, e habitarão no meio de Jerusalém; e me serão por povo, e eu lhes serei a eles por Deus em verdade e em justiça... Assim vos salvarei, e sereis uma bênção; não temais, esforcem-se as vossas mãos!” (Zacarias 8, 4-8 e 14).
Amém.

Lições:   • Zacarias 8, 1-13
• Apocalipse 22
• A. C. 1555