AS PRECES DOS SANTOS


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E o fumo do incenso subiu com as orações dos santos
desde a mão do anjo até diante de Deus”.

(Apocalipse 8,4)

O costume de queimar incenso no culto é um dos mais antigos que a história registra. Teve origem na Igreja Antiga, daí veio para os israelitas e para várias nações pagãs da antiguidade. Era de uso corrente entre os assírios e babilônicos, entre os egípcios e fenícios, entre os gregos e romanos; e em todos esses povos esteve sempre associado à idéia de prece, de súplica e de pedido de proteção a Deus. Na Palavra encontramos o seu uso recomendado como meio de propiciação. No tabernáculo, bem junto ao véu, estava o altar de ouro em que, todas as manhãs e todas as tardes, o sacerdote queimava “o incenso perpétuo diante do Senhor pelas vossas gerações”.
Uma vez por ano, no dia da expiação, quando Aarão entrava para o interior do véu a fim de interceder pelo povo, dizia a Palavra: “tomará o incensório cheio de incenso aromático moído, e o meterá dentro do véu; e porá o incenso sobre o fogo perante o Senhor, e a nuvem de incenso cobrirá o propiciatório, que está sobre o testemunho, para que não morra” (Levítico 16, 12-13). Aqui, além da idéia de prece, existe a de proteção, pois Aarão só podia suportar a presença do Divino quando o propiciatório estava coberto pela fumaça do incenso. O incenso também foi usado como meio de propiciação e de proteção quando os filhos de Israel murmuraram contra Moisés e Aarão, no deserto.
“Então falou o Senhor a Moisés, dizendo: Levantai-vos do meio desta congregação, e a consumirei como num momento; então se prostraram sobre seus rostos, e disse Moisés a Aarão: Toma o teu incensório, e põe nele fogo do altar, e deita incenso sobre ele, e vai depressa à congregação, e faze expiação por eles porque grande indignação saiu de diante do Senhor; já começou a praga... E estava em pé entre os mortos e os vivos e cessou a praga”. (Números 16, 44-46 e 48)
Foi o fumo do incenso, separando os vivos dos mortos, que evitou que a praga se espalhasse; ascendendo como um odor de paz a Jeová, aplacou a cólera Divina.
Os mesmos elementos de prece e proteção aparecem também na visão do incenso queimado que teve João, o revelador, como se vê no capítulo onde se encontra o texto que tomamos por tema. Assim aconteceu quando o último selo foi aberto e um silêncio de medo e de expectativa se fez no céu por quase meia hora, e os sete anjos que estavam diante de Deus, receberam sete trombetas a cujo toque, em rápida sucessão, foi feito um terrível julgamento sobre todos os habitantes da terra. Mas justamente quando se preparavam para tocar, naquele momento tremendo em que estava para decidir-se a sorte de miríades de almas expectantes,
“veio outro anjo, e pôs-se junto ao altar, tendo um incensório de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para pôr com as orações de todos os santos no altar de ouro, que estava diante do trono. E o fumo do incenso subiu com as orações dos santos desde a mão do anjo até diante de Deus”. (Apocalipse 8, 3-4)
Há poucas cerimônias da religião que tão poderosamente despertem a imaginação ou tão vivamente pintem o que é espiritualmente representado, como a da queima do incenso. O fumo, subindo ao ar, irisado e em nuvens que apresentam os mais variados aspectos, parece conduzir para o alto, para o trono de Deus, as mais nobres aspirações, os anseios dos corações, as súplicas secretas de todos os fiéis. Seu penetrante aroma é apropriado para atrair a atenção da Divindade. Sua agradável fragrância é um meio conveniente para aplacar a Sua cólera, e dispô-la a ouvir com simpatia as súplicas humildes daqueles que se prostram em Sua presença.
E, no entanto, a mente racional compreende que aquele fumo não pode transportar uma prece, que a sua ascensão na atmosfera não o leva para mais perto de Deus; que Ele não será afastado de Sua Divina Vontade ou de Seus Divinos propósitos por aquele odor fragrante. Só uma grosseira idolatria, só um supersticioso ou um homem incapaz de elevar os seus pensamentos acima do que é material, explicará assim a eficácia desse rito antigo. Escondida no seu íntimo deve haver uma significação mais profunda, para que ele tivesse um lugar tão proeminente em todos os cultos e fosse incluído, por ordem Divina, entre as cerimônias representativas da Igreja Judaica.
Para a Nova Igreja, tem uma significação profunda, o fato deste rito ter sido visto tão freqüentemente por João na Ilha de Patmos e ter sido tão cuidadosamente descrito no Apocalipse, livro que contém a profecia da nova dispensação religiosa que está agora sendo estabelecida pelo Senhor em Sua Segunda Vinda.
O incenso usado na Igreja Judaica era apenas uma mistura de elementos vegetais que, ao ser queimada, emitia um aroma agradável com a fumaça que lançava para o alto. Em si mesmo este incenso não possuía qualquer eficácia como agente propiciatório. Era, entretanto, um representativo espiritual que apresentava aos sentidos externos, o que se passa no mundo espiritual quando o coração exprime as suas aspirações em humilde prece ao Senhor. Pois essa prece é vista claramente na outra vida, exatamente como “o fumo do incenso que sobe da mão do anjo, até diante de Deus”.
A concepção comum da prece é que ela consiste numa expressão verbal de um desejo que move o coração, acompanhado de um pedido para que Deus o satisfaça. Mas as palavras humanas não são ouvidas no céu, como também lá não se percebe o odor de uma fumaça perfumada que se eleva da terra. O que é falado pela boca expande-se em ondas, na atmosfera, as quais vão perdendo a força até se dissiparem no espaço. A prece humana pode passar do mundo da matéria para o mundo do espírito, somente porque, com a palavra dos lábios, a mente se eleva e o coração se comove.
Não são as palavras que os anjos ouvem; não é ao som da voz natural que o Senhor atende. Pois essas coisas pertencem só ao corpo e à sua vida. Mas “da abundância do coração fala a boca”. O amor e a fé espirituais que inspiram e produzem a palavra, esses sim, sobem até ao trono de Deus. Foi por esta razão que o Senhor disse a Seus discípulos: “e, orando, não useis palavras vãs, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos” (Mateus 6,7). E em outra ocasião, repreendeu os fariseus com as palavras de Isaías: “Este povo honra-me com seus lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mateus 15,8). Quando não estão de acordo com o desejo real do coração ou não exprimem as aspirações do espírito, as palavras que falamos na prece tornam-se como sons vazios que não podem ser ouvidos no céu.
Se as preces, em si mesmo consideradas, não são apenas meras palavras, mas amor espiritual e anseios internos do coração, então elas devem ter uma significação muito mais extensa do que em geral se imagina. Elas não podem ficar restritas aos momentos do culto externo em que as exprimimos conscientemente. O coração nunca cessa de amar, nem mesmo por um momento. Seus desejos são permanentes. Inspiram todos os pensamentos da mente, todos os movimentos do corpo. A alma é, ela própria, um altar de ouro sobre o qual o fogo do amor arde continuamente. O seu ardor é percebido no céu. Os seus desejos, com todas as suas qualidades, embora escondidos dos homens, são todos conhecidos pelo Senhor. Quer oremos com os lábios ou não, as preces de cada momento das ações de nossa vida, ascendem a Deus como incenso e todo “levantar de nossas mãos como o sacrifício da tarde”.
Toda vida é amor e todo amor é simbolizado pelo fogo. O fogo material é uma atividade derivada do sol natural, em virtude da qual uma combinação química é desfeita e substituída por outra. Utilizando a atividade do fogo, podemos produzir miríades de coisas de utilidade prática. Todo desenvolvimento, todo progresso, toda mudança envolve uma queima contínua.
A árvore da floresta — uma maravilhosa combinação de elementos miraculosamente reunidos — logo que é derrubada e o estrondo de sua queda repercute por colinas e vales que a cercam, entra numa fase de lenta combustão a que se chama decomposição. Gradualmente, vai sendo reduzida a seus elementos que voltam a enriquecer o solo, o ar, a água, para depois serem incorporados a novas formas pelas plantas, pelos animais e pelos homens.
O alimento que entra no corpo é reduzido ao que se chama quilo e, depois, é levado pelo sangue às extremidades dos capilares onde, por uma combustão contínua, o que é impuro é separado e conduzido para fora pela torrente venosa, enquanto tecidos novos, sadios e vitais vão sendo constituídos.
Assim acontece também com a vida do espírito que nada mais é que o fogo do sol espiritual. Os elementos que entram na mente através dos sentidos, vão sendo continuamente mudados, desfeitos e recombinados por um processo de combustão, sob o impulso de algum amor ardente. Sem o fogo do amor, não haveria ambição nem incentivo para a ação e, conseqüentemente, não haveria vida. A atividade do amor tem que ser permanente para que o homem viva. É este perpétuo fogo do amor que foi representado entre os gregos pela chama sagrada que as virgens vestais conservavam continuamente aceso sobre o altar.
Do amor espiritual, constantemente ativo no altar da alma humana, levantam-se os fins íntimos, os propósitos, as intenções, que se manifestam nas percepções, nos pensamentos, nas idéias de que são formados os princípios da conduta humana. Estas coisas são percebidas no céu como esferas da vida do homem. Sobem como fumaça do incenso até diante de Deus. Toda combinação de amor e pensamento, nos atos externos, é o resultado desta combustão espiritual. Tal é o amor e a fé a que está unida, tal é o fumo que se eleva ao céu de cada ação executada.
Se o amor que governa o coração é egoísta e mundano, se as intenções e fins a que dá nascimento são contra a ordem Divina, se são cruéis e destrutivos, então o fumo da combustão ascende como uma esfera do inferno. É como a negra e sufocante fumaça que se elevou de Sodoma e de Gomorra no dia do julgamento. Não importa que os atos pareçam bons na forma externa; não importa que a atitude seja piedosa e a prece ardente; aquilo que é percebido no outro mundo, proveniente de quem está num amor mau, leva consigo um odor ofensivo de que os anjos fogem com repugnância. Se, porém, o coração é movido pelo amor a Deus e pela caridade para com o próximo, do fogo que queima no altar dessa vida, ascendo para o Senhor um doce perfume. Cada ato, cada obra — todos os esforços do corpo e da mente — serão percebidos no céu como a fumaça de um fragrante incenso. A qualidade da fragrância revelará os íntimos anseios e desejos do coração. Todo ato da vida exprimirá a natureza do amor que o originou, ascendendo através dos céus como uma humilde prece ao Senhor, exatamente como “o fumo do incenso com as preces do santos ascende das mãos do anjo até diante de Deus”.
Esta prece de vida é a única forma eficaz da prece e, por meio dela, unicamente, alcançamos proteção real. Só por esta prece é que há propiciação. A esta prece o Senhor responde sempre. Sem ela a prece dos lábios nada alcança. O Senhor não concede bênçãos espirituais a quem as pede só exteriormente, tendo as mãos manchadas de sangue, e de coração rejeita-O e se afasta d’Ele. Aquele que tem vivido uma vida de males e que, no momento de perigo, com medo da morte, pede o auxílio do Senhor, com sincera contrição e com promessa de emendar-se pode, com efeito, ser ouvido no céu. Mas o seu coração está apenas agitado por uma onda como as que se vêem na superfície do oceano — onda que passará com o perigo que lhe deu causa. As correntes profundas de sua vida e de seu amor não mudaram por isso. Continuam o seu antigo curso. Só com a liberdade que sucede à crise vencida, é que ele poderá gradualmente alterar o seu caráter, se trabalhar fielmente por um novo amor. Então o fumo de sua combustão será percebido no céu com prazer.
Aquele, porém, que no meio dos males que dominam o seu coração e que do mundo externo fazem pressão sobre ele, se esforça humildemente por servir ao Senhor; que oferece toda a sua vida no altar do culto Divino, agindo tanto quanto é humanamente possível, segundo os princípios do amor e da caridade, esse será cercado por uma esfera de proteção. Cada ato de sua vida será uma prece pela presença do Senhor e por Sua misericordiosa assistência, subindo como o fumo do incenso, em cujo perfume os anjos acharão prazer e, de tal qualidade, que o mal não poderá se aproximar dele.
Se não fosse essa esfera do céu, resultante de uma vida de usos no mundo, nenhum homem poderia ser salvo. Todos seriam destruídos pelos ardentes amores do inferno tão profundamente enraizados no coração humano. Mas por meio daquelas preces vivas que sobem das almas que, embora pouco compreendam do valor espiritual de seus atos, se esforçam pacientemente para andar no caminho da justiça, por um íntimo amor a Deus, amor muitas vezes completamente oculto, que só se revela no altruístico desejo de servir aos outros, o Senhor continuamente protege os homens contra o influxo do inferno. Mantém, por esse meio, o mal à distância para que não tente o homem mais do que lhe é possível suportar.
E onde quer que essas preces vivas se produzam e se expressem externamente em estados de adoração, Ele as ouve através dos céus e, em Sua Misericórdia, atende aos que Lhe suplicam, concedendo-lhes a bênção do perdão, dando-lhes nova vida, uma nova força e um amor mais intenso. Estas são “as preces dos santos”, que João viu “subindo com o fumo do incenso das mãos do anjo até diante de Deus”, preces pelas quais, unicamente, o Senhor pode fazer luzir a luz de Sua face sobre nós e nos dar a paz.
Amém.

•   1ª Lição:     Êxodo 30, 1-10
•   2ª Lição:     Apocalipse 8
•   3ª Lição:     A. C. 4748