AS CHAVES DO REINO


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E tenho as chaves da morte e do inferno”.

(Apocalipse 1,18)

Quando, depois de Sua ascensão, o Senhor apareceu a João como o Filho do Homem no céu, Ele lhe disse: “Não temas, eu sou o Primeiro e o Último. E o que vivo e fui morto; e eis aqui vivo para todo o sempre. Amém: e tenho as chaves da morte e do inferno”. A “chave” significa o poder de abrir e de fechar. “As chaves da morte e do inferno” são, portanto, o poder de controlar os infernos, alargando ou restringindo (à vontade) a sua influência. Na aparência, é o poder de salvar ou condenar os homens.
Por uma errada interpretação da Escritura, muitas pessoas da Igreja Cristã acreditam que “as chaves do reino” foram dadas pelo Senhor a Pedro. Essa opinião é baseada no fato de que quando o Senhor perguntou a Seus discípulos:
“E vós, quem dizeis que eu sou? Simão Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque t’o não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai que está nos céus. E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela: e eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será desligado no céu” (Mateus 16, 15-19).
A primeira impressão que dá esta passagem é de que, com efeito, Pedro foi feito guardião das chaves, sendo-lhe dado, assim, poder sobre os homens — o poder de vida e de morte espirituais. Um exame mais completo do texto torna claro, porém, que mesmo em seu sentido literal, ele não devia ser interpretado desse modo. Não era a Pedro, o homem, mas ao que Pedro acabava de dizer, que o Senhor se referia. Que assim seja torna-se evidente quando se lê o que vem logo depois no mesmo capítulo. Pois aí se diz que quando o Senhor estava falando de Sua morte próxima e Pedro “começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de Ti; de modo nenhum Te aconteça isso”, o Senhor respondeu-lhe, repelindo-o desta forma: “Arreda-te de diante de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens” (Mateus 21-23).
Se aceitarmos integralmente o que dizem essas palavras em sua aparência superficial, ficaremos em dúvida quanto ao que Pedro significa num e noutro caso. Temos que acreditar que aquele que acabava de receber, com a bênção do Senhor, as chaves do reio do céu, era logo depois chamado de “Satanás” e acusado de ser um escândalo para o Senhor. Contra isso, a razão se revolta. Mas se compreendermos que, em ambos os casos, o Senhor estava se referindo ao que Pedro dizia, então a significação do texto torna-se clara. Pois o reconhecimento da Divindade do Senhor é, com efeito, a pedra de ângulo da Igreja e constitui a chave da salvação dos homens.
A sugestão de Pedro para que o Senhor não sofresse a paixão da cruz — e, portanto, não permanecesse fiel, até à morte, aos propósitos Divinos relacionados com a Sua Vinda ao mundo — era, ao contrário, uma tentação induzida pelos infernos. Foi a respeito dessa sugestão que o Senhor disse: “Arreda-te de diante de mim, Satanás; que me serves de escândalo”. Além disso, o Senhor mesmo, mais tarde, nega que tenha delegado a Pedro o poder de abrir e fechar os céus. Pois quando apareceu, depois de Sua ressurreição, disse a Seus discípulos: “É-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mateus 28,18). E, finalmente, depois de já ter ascendido para o céu, Ele disse claramente a João, na Ilha de Patmos: “Eu tenho a chave do inferno e da morte”.
Isto significa que só o Senhor possui o poder de abrir e fechar os infernos. Ele adquiriu este poder enquanto estava sobre a terra, por uma longa série de batalhas contra os infernos, e por vitórias sobre eles, culminando na paixão da cruz. Por estas vitórias nas tentações que sofreu, Ele glorificou progressivamente o Seu Humano, e por meio desse Divino Humano tem, agora, eternamente, o poder de governar os infernos e mantê-los sujeitos à Sua vontade. Se tivéssemos alguma compreensão do que é significado pelo governo dos infernos, tornar-se-ia claro, imediatamente, que isso é uma obra Divina — uma obra que não pode ser feita por homem algum. É uma obra da Sabedoria Infinita que nem um homem tem a possibilidade de executar.
Governar os infernos equivale a redimir e salvar a humanidade. Pode-se supor que quando o Senhor disse: “Eu tenho as chaves do inferno e da morte”, Ele queria dizer que tinha o poder de condenar o mau. Mas o Senhor é o Amor Mesmo e “Suas ternas misericórdias estão sobre todas as Suas obras”. Ele não condena ninguém. Ele abre as portas do inferno somente para que possa conduzir o homem para a liberdade e a alegria do céu; e só as fecha para proteger o homem depois de ter sido libertado; para que o mal não venha a prevalecer e a fazer com que o homem volte atrás novamente. Ele ensina isso abertamente em João: “E, se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo. Quem me rejeitar a mim, e não receber as minhas palavras, já tem quem o julgue; a palavra que tenha falado, essa o há de julgar no último dia” (João 12, 47-48).
Mas se o Senhor ama a todos os homens e possui a chave de sua salvação, porque todos eles não são salvos? A razão é que nenhum homem pode ser salvo contra a vontade. O inferno não é um lugar cercado de altos muros com portas blindadas e fechaduras de segurança, em que o homem pode ser confinado, ou de onde pode ser libertado, por ato arbitrário de Deus. O inferno é um estado de vida. É o amor do mal no coração do homem. Enquanto esse amor domina, afasta a nossa mente do Senhor e da Palavra — voltando-a para nós mesmos. Faz com que vejamos como boas, só as coisas que alimentam os nossos desejos pessoais, e reconheçamos como verdadeiras só as que nos ajudam a realizar a nossa própria ambição. Leva-nos a depositar a nossa confiança unicamente na forma de nossa própria vontade e na perspicácia de nossa própria inteligência. Cega-nos para a verdade da Revelação e destrói toda confiança no Senhor. Constrói a mente na forma do inferno — forma que é diametralmente oposto à ordem do céu.
A libertação só é possível quando o amor de si e do mundo são afastados e substituídos pelo amor do Senhor e pela caridade para com o próximo. Somente quando esses amores reformam a mente, reconstituem o pensamento e mudam a qualidade da vontade, é que o homem pode ser retirado do inferno e introduzido no céu. Isso, homem algum pode fazer só por sua própria força. Pois todo esforço de sua vontade é inspirado pelo amor de si. Ele nasce nesse amor. Recebe de seus pais e antepassados as formas pervertidas da afeição e do pensamento produzidas por esse amor. A tendência para o mal é, portanto, inata nele e parece constituir a sua própria vida. Essa tendência expõe-no à influência dos infernos que o mantém prisioneiro “na afeição e nos grilhões”. É pelo fato de só o Senhor, em Seu Divino Humano, ter o poder de libertar o homem desse cativeiro que, aparecendo como Filho do Homem no céu, Ele disse a João: “Eu tenho as chaves do inferno e da morte”.
A porta por onde podemos escapar dos amores de si e do mundo — a porta de entrada para o céu — é o reconhecimento, de coração, de que o Senhor Jesus Cristo é o único Deus do céu e da terra. É o reconhecimento de que Ele é o Criador do Universo, cujo Amor e cuja Sabedoria conservam perpetuamente todas as coisas — tanto no ser como na existência. É o reconhecimento de que a nossa vida vem d’Ele e pertence a Ele, e que nos é dada para que a usemos no cumprimento de Sua vontade. É o reconhecimento de que nada podemos fazer de bom e nada podemos pensar de verdadeiro por nós mesmos, e que, portanto, necessitamos constantemente de Seu auxílio e de Sua direção.
É esta a porta através da qual, somente, o Senhor pode nos tirar da casa da prisão do amor próprio. E as chaves que abrem essa porta são as Verdades Divinas da Revelação; pois estas são o único meio pelo qual podemos chegar a ver o Senhor, a ouvir a Sua voz e a conhecer a qualidade de Seu Amor e de Sua Sabedoria, para que procuremos Sua direção e instrução.
Estas chaves, sem dúvida, não foram adquiridas, pela primeira vez, pelo Senhor quando veio à terra. Elas são a própria Sabedoria de Deus — “a Palavra que estava no princípio com Deus” — e da qual se diz: “Pela Palavra do Senhor foram feitos os céus, e todas as suas hostes pelo sopro de Sua boca”. Só podiam servir, porém, como chave da porta da libertação do homem na medida em que podiam se tornar conhecidas dele — em que podiam ser trazidas ao alcance de seu entendimento finito e dar-lhe, assim, uma visão do Senhor. A Palavra do Senhor tem oferecido a chave da salvação a todos que quiserem recebê-la. Mas ninguém pode ser compelido a isso contra sua própria vontade. Pois a recepção é feita pelo amor, e o amor não pode ser forçado. O homem só pode ser libertado do amor de si pelo amor ao Senhor e aceitando a direção da Divina Verdade livremente e por sua própria escolha.
Antes da primeira vinda, à medida que os homens iam rejeitando os ensinamentos do Senhor e insistindo em seguir os ditames de sua própria vontade, o mal ia aumentando. Na falsa luz dos amores maus, a verdade da Palavra ia sendo pervertida para servir o eu. E embora o Senhor repetidamente renovasse Sua aliança em outras formas que, por algum tempo, restauravam a fé do homem, estava previsto que o progressivo aumento do mal arrastaria o homem para baixo e, por último, destruiria toda possibilidade de fé — a não ser que o Senhor Mesmo viesse ao mundo, vencesse os infernos e libertasse o homem de sua poderosa influência. A não ser que o Senhor glorificasse Seu Humano e, por isso, tomasse para Si o poder de manter os infernos em sujeição e, ao mesmo tempo, abrisse a significação oculta de Sua Palavra, restituindo às mentes dos homens a luz da Verdade do Céu. A não ser que isso fosse feito, toda raça humana pereceria na morte eterna.
Conter permanentemente a maré do mal e desviar sua ameaça de destruição era o propósito da Vinda do Senhor — propósito que só podia ser realizado depois de longas épocas de preparação. Pois a verdade, que devia ser a chave para a redenção final do homem, não lhe podia ser dada enquanto, por um processo de crescimento racional, ele não tivesse sido preparado para compreendê-la. Exatamente como as crianças, que só podem ser instruídas de acordo com as suas idades, assim também os homens não podiam ser instruídos pelo Senhor a não ser no grau do seu progresso em conhecimento e experiência — na medida em que a mente racional ia sendo lentamente formada por meio das sucessivas gerações que iam passando para o mundo espiritual.
Esta é a razão porque a Palavra foi dada em linguagem obscura e em parábolas. É a razão porque a significação interna da Palavra esteve tanto tempo oculta. É a razão porque o Senhor disse ao profeta: “Vai, Daniel, porque as palavras estão fechadas e seladas até ao tempo do fim”, e porque Ele disse a Seus discípulos: “Tenho muitas coisas para vos dizer, mas agora ainda não podeis suportá-las”. Pela mesma razão se diz no Apocalipse que quando “os sete trovões fizeram ouvir suas vozes” e João estava pronto para escrever o que aquelas vozes proclamavam, foi-lhe dito do céu para “selar aquelas coisas que os sete trovões diziam, e não escrevê-las”.
Os Escritos nos dizem que o que João foi proibido de escrever era “os próprios essenciais da Nova Igreja” que naquela época não podiam ser recebidos pelos homens (A. R. 473). Mas quando a preparação já estava completa, quando o Julgamento Final já tinha sido efetuado, e tinha chegado o tempo para o Senhor fazer a Sua Segunda Vinda, foi dada a ordem: “Não seles as palavras desta profecia, porque o tempo está próximo” (Apocalipse 22, 10). Pois então o Senhor podia aparecer em Seu Humano Glorificado. Podia abrir o Livro da Palavra e “quebrar os selos”. Podia revelar as secretas operações de Sua Providência, para que os homens pudessem ver Seu Amor e Sua Sabedoria em todas as coisas da criação. Podia dispersar as nuvens da falsidade que se tinham acumulado nas mentes humanas a respeito da Palavra, para que assim os homens pudessem ver a face do Senhor na Glória, e voltar uma vez mais, a adorá-l’O com alegria.
O Senhor Jesus Cristo, que andou na terra com o humilde aspecto de um homem mortal, é Aquele que agora aparece na Verdade da Doutrina Celeste, com o poder de redimir das cadeias do amor de si todo aquele que quiser segui-l’O na fé e na vida. É Ele que aponta o caminho para a porta que abre o coração do homem para a liberdade, a caridade, o uso eterno e a felicidade do céu, dizendo: “Eu tenho as chaves do inferno e da morte”.
Amém.

•   1ª Lição:     Daniel 12
•   2ª Lição:     João 12, 31-50
•   3ª Lição:     A. E. 536, 1-2