A SEMENTE DA PAZ


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Por causa da semente da paz, a vinha dará seu fruto, e a terra dará a sua novidade, e os céus darão o seu orvalho”.

(Zacarias 8,12)

Os judeus cativos tinham voltado da Babilônia. Uma Jerusalém nova estava se erguendo das antigas ruínas. As fundações da casa do Senhor tinham sido lançadas e a reconstrução do Templo estava progredindo. Vieram, então, mensageiros do povo indagar de Zacarias se deviam continuar a observar os jejuns que tinham sido instituídos durante os anos do cativeiro, em sinal de arrependimento e de pesar pela perdida glória de Israel. O profeta replicou que os dias da provação já tinham passado. Não havia mais motivo para lamentação. “O jejum do quarto mês, e o jejum do quinto, e o jejum do sétimo, e o jejum do décimo, se tornará para a casa de Judá em gozo e alegria, em festividades solenes” (Zacarias 8,19).
Porque assim diz o Senhor:
“Voltarei para Sião e habitarei no meio de Jerusalém; e Jerusalém será chamada a cidade de verdade, e o monte do Senhor dos Exércitos, monte de santidade” (idem 8,3).
“Porque antes destes dias, não havia salário para o trabalho dos homens, nem dos animais; nem havia paz para o que entrava nem para o que saía, por causa do inimigo, porque eu incitei todos os homens, cada um contra seu companheiro. Mas agora não me haverei eu para com o resto deste povo como nos primeiros dias, diz o Senhor dos Exércitos. Por causa da semente da paz, a vinha dará seu fruto, e a terra dará a sua novidade, e os céus darão o seu orvalho” (idem 8, 10-12).
Para os judeus, isso era uma promessa de proteção Divina, de paz e de prosperidade material. Em sua significação literal, a promessa nunca foi cumprida. Embora não o soubesse, Zacarias realmente falava por ordem Divina a respeito da Vinda do Senhor, especialmente de Sua Segunda Vinda, e do estabelecimento final de Seu Reino sobre a terra. Falava do regozijo e da alegria de coração que então dissiparia o pesar, o sofrimento e a tristeza das idades anteriores. Falava do progresso e da prosperidade espirituais que reinariam quando o Senhor se revelasse na glória, e assim voltasse a “abençoar Seu povo com a paz”.
Um estado de paz é o supremo anseio da vida humana. É a base de toda felicidade, e sem isso nenhuma outra bênção pode ser concedida ao homem. Não nos referimos à paz que é apresentada como um estado de completo repouso, em que os desejos são postos à parte, em que todo anseio do coração é silenciado, em que a mente como que é embalada para dormir. Isso é apenas o repouso da fadiga. Representa não a vitória, mas a rendição. Aí em vez de vida há, ao contrário, a sua negação. A paz genuína é um dom que acompanha a vida em sua mais alta atividade, que torna os sentidos mais agudos e a mente mais aberta, que exalta a esperança e abre todas as faculdades ao completo prazer e alegria de viver. É esta a paz do céu, e é esta a paz que o Senhor tem o propósito de conceder, em grau cada vez mais elevado, mesmo aos homens sobre a terra.
Esta paz, em sua essência, é uma sensação de descanso, de proteção, de segurança no meio do trabalho e da atividade a que somos sempre levados pelo amor — segurança de que o objetivo do nosso amor, a mais alta finalidade de nossa vida, será certamente alcançada. Quando este resultado final está garantido, todas as dificuldades e sacrifícios passados para atingi-lo, não importam; o trabalho exigido para isso torna-se uma causa de prazer; nesse trabalho está o prazer da vitória, do sucesso que nos levará à bem-aventurança da vida, recebida e sentida como propriamente nossa. Esta plena recepção da vida com a felicidade respectiva constitui a mais alta finalidade que teve em vista o Senhor ao criar o homem. Nisto está o céu. Nisto está o Reino de Deus que o Senhor veio estabelecer na terra.
Esta paz depende de nossa visão do Senhor, do sentimento compreensivo de Sua Onipotência e de Sua Onipresente Providência. Depende de nossa percepção do Amor Infinito e da Sabedoria Infinita em que reside todo o poder de controlar o destino da raça humana, para atingir o progresso da humanidade, tendo em vista atingir, afinal, o ideal social, isto é, o completo bem-estar de todos e o livre desenvolvimento de cada indivíduo.
Tal paz depende da compreensão de que este poder onipresente é universalmente imanente, está imediatamente presente, atuando em cada mínima particularidade da vida, guiando-nos individualmente para alcançarmos o nosso Bem mais alto, conduzindo-nos, como uma corrente irresistível, para a felicidade eterna, na medida em que desejamos cooperar com a Divina Providência. Ver, reconhecer — sentir intimamente com plena segurança — o poder protetor do Senhor é a base, o fundamento da paz verdadeira, o único meio de alcançá-la.
Onde esta confiança no poder protetor do Senhor não existe, a mente é devastada pela dúvida interna, pela ansiedade e pelo temor. Está privada de paz. Pode existir, talvez, uma tranqüilidade externa, que é uma imitação deficiente da paz, proveniente da falsa aparência de que o homem tem do poder em si mesmo — o poder de realizar os seus desejos mais caros. Isso, porém, é imaginário e irreal. É superficial e temporário. Só pode ser mantido enquanto durar a ilusão do poder. É uma mera conseqüência dos sucessos externos que se mantém, apenas, enquanto o céu está limpo e há esperança de que não venha tormenta. Mas por trás disso, nos recessos profundos da mente, jazem assombras negras da incerteza. É um bom tempo precário que não dá garantias de apoio seguro, que não dá forças para suportar, nem poder para enfrentar as dificuldades e os sofrimentos com calma e paciência.
Essa paz nos abandona quando vem a tempestade, quando a fortuna nos repele, quando no choque dos desejos em conflito, das ameaças de infortúnio, a nossa fraqueza se revela. Então não há mais porto de abrigo a que possamos nos dirigir, e caímos presas do desânimo e do desespero. Não temos outra alternativa senão fugir ou escapar daquelas forças que reconhecemos serem muito mais fortes do que nós, que nos cegam para a realidade, construindo uma nova ilusão do poder e soprando nova vida à chama expirante da esperança de renovação daquela ilusão destruída. Desta forma podemos, por algum tempo, nos consolar com uma falsa sensação de segurança, para enfrentar de novo a derrota no próximo giro da roda da vida.
Nunca, na história do mundo, a humanidade esteve tão afastada da paz como hoje. Nunca houve menos reconhecimento da onipresente Providência do Senhor. Nunca os homens depositaram maior confiança no aparente poder da inteligência humana e na vontade humana para realizar o bem-estar da sociedade e a felicidade do indivíduo. A confiança em si mesmo está na ordem do dia, criando uma inaudita ilusão de progresso. Mas por trás dela existe uma profunda intranqüilidade, um nervoso tatear nas trevas. Os homens correm ora em uma direção, ora em outra, seguindo os impulsos da emoção sem qualquer propósito definido, sem um seguro conhecimento dos seus objetivos — do destino final da vida humana. Seguirão qualquer líder humano que desperte a esperança de vencer os obstáculos que estão imediatamente diante deles, quer ofereça ou não, alguma solução para os problemas vitais.
No ardor de confirmar a ilusão de seu próprio poder, querem passar de um salto para uma vida nova, sobre a chama e o fulgor de falsos fogos que lançam labaredas na noite, labaredas que tremulam e morrem, deixando as trevas mais espessas do que antes. Sob a influência de mil teorias opostas sobre o curso que a raça humana deve seguir para alcançar o seu destino, os homens são arrastados aos mais terríveis conflitos, exclamando ao mesmo tempo: “Paz, paz!, quando não há paz!” Porque não consegue atingir o objetivo de felicidade que deseja. Nisso se cumpre o que disse o profeta: “Não não havia salário para o trabalho dos homens, nem dos animais; nem havia paz para o que entrava nem para o que saía, por causa do inimigo, porque eu incitei todos os homens, cada um contra seu companheiro”.  
Mas a este mundo, confundido pelo medo e pela dúvida, o Senhor veio outra vez — veio revelando nos ensinamentos de Sua Palavra, a verdade interna que o homem não tem poder em si mesmo, mas que “o poder pertence a Deus somente”. Veio desvendar os fins de Sua Infinita Misericórdia e tornar manifesta a presença universal de Seu Amor e de Sua Sabedoria, e a oculta, mas irresistível corrente de Sua Providência. Nesta verdade revelada em Sua Palavra agora aberta ao pensamento e ao entendimento humano, há realmente a “semente da paz”.
O resto de Seu povo, isto é, todos aqueles que se afastam de uma ilusória confiança no seu próprio poder e voltam à fé n’Ele e em Seu Divino poder de redimir e salvar; todos aqueles que vêem Sua presença na Palavra, reconhecendo-O como único Deus verdadeiro, acharão n’Ele um refúgio na desgraça, uma torre forte nos tempos de aflição. A todos esses, Ele vem como o Príncipe da Paz, apontando o caminho do verdadeiro progresso, dando uma segura visão do objetivo a alcançar, dando forças para seguir esse caminho e a certeza de proteção na luta para atingir esse objetivo, e restituindo o sentimento de segurança que há muito tinha sido perdido, sentimento que é o único fundamento da verdadeira paz interna.
Só quando nos voltamos para Ele com o desejo de que nos guie e sustente, reconhecendo a nossa própria fraqueza, a nossa própria cegueira, é que Ele pode cultivar os nossos corações, levando-nos a harmonizar assuas aspirações divergentes, de modo que os desejos de um não entrem em conflito com os de outro, mas contribuam para o bem geral. Só a Lei Divina, agora revelada na Doutrina Celeste, é capaz de levar a uma harmoniosa unidade os complexos elementos da vida humana. Só essa Lei tem o poder de fazer isso, sendo esse o propósito único de Sua Divina Revelação. Portanto, guardando-a, “há grande recompensa”, como diz a Palavra.
“Por causa da semente da paz, a vinha dará seu fruto, e a terra dará a sua novidade, e os céus darão o seu orvalho”. A confiança no Senhor, a fé nos ensinamentos de Sua Palavra, a aceitação de Sua verdade como lei da vida — é isto a semente da paz pela qual todas as bênçãos espirituais são dadas aos homens. Essas bênçãos são representadas pelo “fruto da vinha, a novidade da terra, e o orvalho do céu”.
O “fruto da vinha” significa a afeição espiritual da verdade de que provem o entendimento dos fins e propósitos Divinos na vida do homem. Ser afetado pela verdade espiritual é ser inclinado de coração para os ensinamentos da Palavra. É achar prazer no conhecimento das coisas Divinas e celestes. E este prazer abre a mente para ver, para entender o que o Senhor ensina. Com este entendimento vem a luz que dispersa assombras da dúvida e da incerteza. Traz a convicção e a segurança internas, abrindo diante de nós uma luminosa estrada por onde podem caminhar sem receios. E esta verdade que não é uma vã imaginação do homem, que ao contrário, é a Infinita Sabedoria de Deus, conduz ao bem, ao verdadeiro progresso, à efetivação da felicidade final e do uso para o qual fomos criados. Conduz à vitória sobre o mal e a falsidade que tão duramente afligem o mundo com o seu cortejo de dores e sofrimentos.
E à medida que esse bem vai sendo atingido, à medida que essa vitória vai sendo alcançada, a mente vai se preparando para receber novas verdades e descortinar realidades mais profundas. Estas novas verdades, que abrem outros caminhos para o nosso desenvolvimento, são o que se chama “as novidades da terra”.
No âmago de tudo, está aquela verdade de paz chamada “o orvalho do céu”. A água, em todas as suas formas, corresponde à verdade. Essa correspondência, porém, varia de acordo com a forma representada pela água. O oceano, que é o reservatório geral de onde, por evaporação, a água volta ao céu, representa os conhecimentos da verdade armazenados na memória. Os rios e torrentes que carregam o solo aluvial das montanhas para espalhá-lo nas planícies — rios ricamente providos de alimento para a germinação das sementes — representam aqueles princípios racionais da verdade que trazem consigo, para serem ulteriormente aplicados, os propósitos e intenções dos corações que os examinam, preparando-os para os usos práticos na ação e na palavra.
Os mananciais e as fontes representam a verdade pura da Palavra armazenada na mente interna, nas profundezas ocultas do coração — armazenadas como relíquias durante a infância e a meninice para servir depois na inauguração e manutenção da vida espiritual, na idade adulta. A chuva que cai sobre a terra quando vem a tormenta, quando o céu está nublado, representa a verdade da tentação — a purificadora verdade que carrega os vapores nocivos dos amores egoísticos e as falsas idéias que os males hereditários acumulam na atmosfera da mente.
O orvalho, porém, aquela mais pura de todas as águas, que é destilada sobre a superfície da terra pela madrugada ou de manhã, quando o sol se levanta, representa “a verdade da paz”. Esta não pode ser recebida no estado de tentação. Só é concedida nas épocas de exaltação espiritual, nos momentos de culto, quando o Senhor está presente em nosso pensamento, quando o amor por Ele é despertado com uma sensação de alegria, quando os cuidados externos e a opressão da ansiedade estão afastados e a caridade espiritual reina em nosso coração. Não é, em rigor, uma formulação claramente definida da verdade, mas apenas uma percepção suave do seu valor. É um encanto passageiro, sutil. Essa percepção não pode ser conscientemente retida por muito tempo. Quando as atividades e as solicitações da vida natural se apossam novamente de nós, o orvalho da paz é dissipado como se fosse evaporado pelo calor do sol “como uma nuvem de orvalho no calor da ceifa”.
Contudo, ele não se perde. Assim como o orvalho dá à erva da terra uma frescura que a chuva não pode produzir, assim como ele penetra até ao âmago das plantas para alimentar suas mais finas essências, difundindo aí nova vida em todas as fibras e tecidos, assim também, nos estados de culto, a verdade da paz emanada da Palavra, penetra nas coisas mais íntimas da vida humana e daí se distribui e espalha nas suas substâncias amenizando-as e modificando a origem das idéias e os fins da vida do homem que se enche de satisfação e felicidade, fazendo de sua mente um verdadeiro céu.
Quando a aurora cede lugar ao dia, realmente não guardamos dela uma percepção consciente; ela permanece, porém, como um sentimento íntimo de segurança e de confiança no Senhor — como um penetrante estado de paz. Isso nos enche de coragem para enfrentar sem temor as vicissitudes da vida, sustentando-nos nas provações e tentações. Dá-nos forças para encarar os sofrimentos e as derrotas aparentes com calma e resignação. Faz-nos sentir a presença do Senhor e infunde-nos uma fé vital em Sua amorosa Providência. Preserva a nossa afeição pelas coisas do céu e encaminha os nossos passos pela estrada da paz.
É esta a suprema dádiva do Senhor em Sua Vinda. Mesmo nestes dias de trevas, mesmo na atmosfera de lutas que domina a mente dos homens à roda de nós e que encontra em nossas próprias mentes muito em que se agarrar para levar-nos a estados de dúvida e de temor, se nos voltarmos para a Doutrina Celeste com fé e confiança, encontraremos nela “a semente da paz”. A confiança inabalável na Divina Providência do Senhor quando Ele manifesta Seu Amor e Sua Sabedoria onipresentes, dá-nos-á a recompensa espiritual de uma fé esclarecida. O Senhor gratifica-nos com “o fruto da vinha, com as novidades da terra”, e na aurora de cada novo estado, “com o orvalho do céu”. Sobre este último, Ele disse a Seus discípulos: “Paz Eu deixo convosco; a minha paz Eu vos dou; não como o mundo dá, Eu dou”.
Agora, na Nova Igreja, como nunca o foi antes, pode a Divina promessa ser cumprida: “O Senhor levanta a luz de Sua face sobre vós e vos dê a paz”.
Amém.

•   1ª Lição:     Zacarias 8, 1-17
•   2ª Lição:     João 14, 15-31
•   3ª Lição:     A. C. 3696, 1-2