A SEARA E OS CEIFEIROS


Sermão pelo Rev. W. H. Alden


“E, vendo a multidão, teve grande compaixão deles, porque andavam desgarrados e errantes, como ovelhas que não têm pastor. Então disse aos Seus discípulos: A seara é realmente grande, mas poucos os ceifeiros.
Rogai ao Senhor da seara que mande ceifeiros para a sua seara”.

(Mateus, 36-38)

O que vêm a ser as multidões desgarradas e errantes? O que são os poucos ceifeiros? Como pediremos ao Senhor da seara para mandar ceifeiros para a Sua seara?
A “multidão” significa as várias coisas da afeição e do pensamento que constituem o homem. Como há uma infinidade de coisas em Deus — o Criador —, há também um número indefinido de coisas no homem — a criatura. O homem é um microcosmo; todas as coisas do mundo estão reunidas nele. Por isso todas as coisas do céu e da terra foram criadas para servi-lo; e ele, por sua vez, foi feito de tal modo que pode, em seu próprio lugar e a seu próprio modo, servir a todos os outros. As coisas particulares que estão nele, organizadas na maravilhosa forma do homem, são realmente “multidões”.
Desgarradas e errantes, como ovelhas que não têm pastor, as “multidões” mencionadas no texto são um representativo muito apropriado do estado do homem antes da regeneração. No original grego a palavra traduzida por “desgarrada” significa lacerada ou dilacerada; e a palavra traduzida por “errante” significa propriamente rejeitada ou expulsa. Antes da regeneração, a multidão de afeições e de pensamentos que constituem o homem, são rejeitadas, afligidas, dilaceradas e assoladas pelas cobiças de toda espécie, que não encontram em seus prazeres qualquer satisfação real.
Foi observando esta multidão que o Senhor declarou que a seara era abundante. A multidão de qualidades — feitios característicos da vontade e do entendimento — que constituem a natureza humana, não são necessariamente más. Todas elas são de criação Divina; são as coisas a respeito das quais Deus disse, quando as criou, que eram “muito boas”. O mal nessas coisas e, por causa dele, o desassossego que o Senhor observou nas multidões do Seu tempo, e a infelicidade que Ele observa, hoje, na vida dos homens, é devida a se terem separado do Senhor, ficando como ovelhas sem pastor — desgarradas e errantes, como se tivessem sido expulsas do Divino cuidado e da Divina proteção.
O homem que é guiado pelo Senhor pode comer os mesmos alimentos que aquele que não o é. O homem que está se regenerando pode se vestir da mesma forma que aquele que não se regenera; pode executar os mesmos usos no mundo, gozar os mesmos prazeres. O mesmo conjunto de deveres naturais pode ser desempenhado pelo homem celeste e pelo homem materialista. Tanto as verdades do céu, como as falsidades do inferno, podem se desenvolver no meio do mesmo ambiente, da mesma experiência externa de sucessos ou de fracassos, das mesmas esperanças e dos mesmos temores, dos mesmos prazeres e desapontamentos. O campo é o mundo. E a experiência do mundo — ou mais exatamente, a mente trabalhada pela experiência do mundo — é o solo em que aquelas semente são plantadas. O homem se transformará em um anjo do céu ou em um demônio do inferno, depois que essas sementes brotarem, crescerem, produzirem frutos e amadurecerem. O Senhor disse: “Eu peço não para que os tireis do mundo, mas para que os preserveis do mal”.
O que será a colheita de cada vida depende da espécie de semente que é semeada e do cuidado que lhe é dado. A nossa vida é urdida de uma maneira maravilhosa sob a influência da hereditariedade e do ambiente em que vivemos, pelos fatos resultantes dos conhecimentos aprendidos e aplicados — por tudo que fazemos por nossa própria escolha —, e sob a direção dos maravilhosos cuidados da Divina Providência, que nos conduz e guia nas mínimas particularidades. O que somos hoje, não é acidental, nem uma questão do momento, apenas, mas um resultado definido de tudo que entrou em nossa vida, de tudo que teve lugar em nossas afeições, ou foi cultivado em nossos atos voluntários. Se temos alguma coisa da vida espiritual é porque as sementes dessa vida foram semeadas em nós e produziram: “primeiro, a folha, depois a espiga, e depois o grão cheio na espiga”. A semente da vida espiritual é a Palavra de Deus.
Ninguém nasce na vida espiritual; podemos dizer mesmo que todo homem nasce no inferno. É por isso que as sementes do amor de si e do fausto da própria inteligência encontram na mente natural um solo preparado para recebê-las. Nascemos filhos deste mundo e, por isso, os germens da vida deste mundo encontram pronta aceitação em nós. A mente natural procura no exterior os seus prazeres, pela satisfação dos sentidos, pela posse das coisas materiais, pelo sucesso social. É esta a seara que ardentemente desejamos. Somos por natureza grandemente interessados na colheita desta seara. Há ceifeiros com abundancia em nossa vontade e em nosso entendimento, ansiosos por achar um meio de fazer carreira no mundo, por gozar os seus inúmeros prazeres.
Mas a seara abundante de que o Senhor fala no texto, não provém do desenvolvimento daquelas sementes que encontram solo muito apropriado na mente natural. O Senhor procura sempre desviar a mente de seus ouvintes das coisas que só satisfazem externamente. Ele considera, sempre, como secundárias as coisas da vida natural; quase como se elas não tivessem importância alguma.
“Olhai os lírios do campo” — disse Ele — “como eles crescem: não trabalham, nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim enfeita a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá mui mais a vós, homens de pouca fé?” (Mateus 6,28-30).
A seara que Ele quer colher tem valor muito maior do que as searas da vida externa ou natural. O reino em que Ele quer introduzir os homem, ultrapassa em glória a todos os reinos do mundo, e a glória destes, quanto ao homem mesmo, é maior do que as roupas que ele veste ou do que os alimentos que come. A seara a que o Senhor se refere é a seara daquilo que constitui o homem em nós; daquilo que pode transformar-nos em anjos. É tudo que pertence à Igreja do Senhor, que é uma imagem de Deus mesmo.
A semente desta seara é a Palavra de Deus — é aquela verdade da Divina Revelação que provém do Senhor e que, essencialmente, é Deus Mesmo, que Ele revelou no Antigo e no Novo Testamento, e nesta Doutrina do Seu Segundo Advento, pela qual Ele desvendou e realizou a última Revelação. Esta semente da Revelação deve ser plantada na memória, deve crescer no entendimento e dar frutos na vontade e na vida. Assim, “a seara abundante” é nada menos que o reino do Senhor — a Igreja e o Céu —, o resultado da aplicação dos novos princípios à vida do homem, o que mudará e renovará, inteiramente, todas as afeições, todos os pensamentos e todas as atividades de sua vida. Esta mudança e renovação é o que se chama regeneração — o novo nascimento.
A semente desta nova vida, como já foi dito, é a Palavra de Deus. A sua seara é o Senhor recebido na vida. E as coisas infinitas que estão n’Ele e que Ele oferece gratuitamente para sustentar e nutrir os homens, constituem a abundância da seara. Isto é muito mais do que a retidão externa. A vida espiritual não é um sistema de ética ou de moralidade, embora abranja isso também; mas é a que tem o Senhor em si. O conhecimento do poder salvífico do Senhor é a “pérola de grande valor”; a verdade da Divina Revelação é o “tesouro escondido no campo”; a maravilhosa força de crescimento que esta verdade possui é revelada na parábola da semente de mostarda que se torna “a maior das hortaliças”.
A Palavra da Divina Revelação não foi dada aos homens para lhes ensinar a mera retidão externa da vida. As leis morais do Decálogo eram conhecidas e praticadas muito antes de serem solenemente promulgadas no Sinai. A força da Palavra — o seu valor para os homens — não está nas lições morais contidas na história dos filhos de Israel; nem na majestade da poesia e da beleza dos Salmos, ou nas profecias nacionais. A sua força está no fato de ser ela a Palavra de Deus que traz Deus para junto dos homens, que O torna conhecido deles, habilitando-os a se aproximarem d’Ele, a adorá-l’O e a obedecer-Lhe. Por ser a Palavra o Livro da Vida, ela é também o meio de levar aos homens a grande bênção de Sua Sabedoria e do Seu Amor. Esta verdade é a semente da vida eterna.
A vida no mundo, sem Ele, tem também as suas multidões de pensamentos e de afeições, de atividades e de prazeres, mas essas multidões são como ovelhas que não têm pastor. Há poucas pessoas que não sofrem alguma falta das coisas que o mundo dá; e aqueles que aparentemente têm tudo que desejam não encontram nelas uma satisfação duradoura. Os desejos naturais sempre clamam por alguma coisa que não possuem. São como o “fogo que nunca se apaga”. As searas das alegrias deste mundo vão se tornando cada vez mais pobres à medida que os anos vão passando. Mas, se o Senhor for reconhecido na vida, quão diferente se torna a perspectiva! A vida, então, deixa de ser limitada por estreitos horizontes de coisas materiais, de condições temporais, para participar dos propósitos eternos do Divino Criador e Pai. O conhecimento de Sua Providência projeta a luz do céu sobre todos os problemas da vida. A confiança na Providência nos dá forças e tranqüilidade para suportar todas as provações e tentações.
Que seara abundante é apresentada ao pensamento de todo aquele que entra para a Nova Igreja do Senhor, à qual foram reveladas com abundancia as verdades do sentido espiritual da Palavra, iluminando os lugares obscuros da letra; para quem o mundo espiritual não é o além nebuloso e incerto, mas uma realidade claramente definida; para quem os deveres da vida cotidiana são estabelecidos como nunca o foram antes na história do mundo! O Senhor tem sido verdadeiramente generoso para conosco!
Mas os ceifeiros são poucos — os ceifeiros que querem aprender a verdade. Espiritualmente, os ceifeiros são as faculdades da vontade que recebem e aplicam à vida as verdades reveladas pelo Senhor. Estas são poucas. Podemos entrar intelectualmente nos mistérios da fé; podemos aprender os princípios da interpretação espiritual da Palavra; podemos ver claramente a natureza do mundo espiritual; podemos conhecer os nossos deveres para com o Senhor e para com os outros homens. Mas a vontade não tem pressa de afeiçoar-se a estas verdades, para que elas produzam frutos.
As nossas afeições — isto é, os nossos ceifeiros — são lentas em aprender as coisas da vida espiritual. “A seara é abundante, mas os ceifeiros são poucos”. As afeições estão absorvidas pelas coisas do mundo, e os seus objetivos parecem ser os mais importantes. Os conhecimentos do Senhor e de Seu Reino são como uma cidade celestial demasiado afastada. Vistos através de uma atmosfera glacial, esses conhecimentos parecem que não se aproximam de nossa vida cotidiana; pensamos então que eles não se adaptam às condições deste mundo material. Contudo, devemos “rogar ao Senhor da seara que mande ceifeiros para a Sua seara”.
Como faremos o nosso pedido? Não o devemos fazer por palavras, apenas, mas através de nossos atos também. Na realidade, não precisamos instar com o Senhor da seara para mandar ceifeiros, pois Ele está infinitamente mais desejos de mandá-los, do que nós de recebê-los. Precisamos, porém, preparar o caminho para a sua vinda, para que o seu trabalho seja possível. Precisamos, antes de tudo, armazenar na memória as formas da verdade contidas na Palavra. Estas verdades da Palavra e da Doutrina revelada constituem os germens da seara, as sementes do Reino de Deus. Sem estas sementes não pode haver seara espiritual alguma; do mesmo modo que não pode haver seara em nossos campos terrestres, se as sementes não forem semeadas primeiro. A semente é a Palavra de Deus.
Estas formas da verdade, contudo, não devem ser conservadas inativas na memória; este é apenas o primeiro passo. O trabalho intenso que temos a fazer é evitar os males que a verdade revelada vai nos mostrando como sendo pecados contra o Senhor. Em ocasiões anteriores, podemos ter evitado os males, porque outros o faziam em torno de nós, ou porque dessa forma agíamos de acordo com as convenções da esfera em que nos movemos. Mas isso não é o bastante. Isso não é colher a seara do Senhor. É só quando evitamos os males como pecados contra Deus que um princípio distintamente espiritual entra em nossa vida. Quando os pecados são assim vistos e evitados, há um influxo de boas afeições e de bons pensamentos, vindo do Senhor. Os frutos da inteligência e da sabedoria são produzidos pelo “Senhor da seara”.
Então amadurece a seara da vida celeste (está realmente madura) nesta mesma multidão de afeições, de pensamentos e de atividades, que vivia antes desgarrada e errante, como ovelhas sem pastor. As mesmas atividades externas estão em exercício, como antes, e todas as coisas da vontade e do entendimento naturais com seus prazeres, são percebidas como antes. Mas tudo isso agora procura, não a satisfação egoística, não qualquer vantagem mundana, como fim principal, mas o Senhor e o céu. O amor do uso suplantará o desejo de vantagens egoísticas no comercio, nos negócios ou na profissão; a confiança na Divina Providência tomará o lugar da confiança no eu; cujo reconhecimento da relação de todas as coisas da vida no mundo com as coisas eternas evitará o orgulho e a ansiedade por outros sucessos, e tirará o aguilhão da derrota e do desapontamento. Acima de tudo e no íntimo de tudo, está a paz que o mundo não conhece — a bênção da conjunção com o Senhor: Ele em nós e nós n’Ele, o que constitui a colheita mesma — a abundante colheita da vida eterna.
Amém.

•   1ª Lição:     Salmo 24
•   2ª Lição:     Gênesis 24
•   3ª Lição:     Mateus 9, 14-38
•   4ª Lição:     A. C. 932