A SANTIDADE DA PALAVRA


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E levantou-se Moisés pela manhã de madrugada, e subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe tinha ordenado, tomando em sua mão as duas tábuas de pedra”.

(Êxodo 34, 4)

É geralmente reconhecido por todos os que sinceramente professam a fé cristã que a Palavra de Deus é santa. Mas onde reside a sua santidade, em geral, não se sabe. E como não se sabe, dificilmente pode ser mantida a crença nessa santidade — por uma mente profunda-mente reflexiva. Tanto o homem simples como o ilustrado sempre supuseram que há um elemento de santidade no próprio Livro. Tendo sido ditado pelo Senhor, por meio dos profetas, foi posto aparte dos outros livros e dotado de um poder salvífico que não pode ser encontrado nos demais. Comumente, não se compreende como se exerce esse poder, a não ser como uma ação mágica e miraculosa. Decorre, como conseqüência natural, da posse do Livro e de sua leitura de tempos em tempos, mesmo que não seja compreendido.
Há uma verdade fundamental nessa fé infantil, não devido a qualquer poder mágico, mas porque dispõe a mente de modo favorável à recepção do que é Divinamente ensinado na Sagrada Escritura. Se, porém, essa fé for confirmada ao ponto de gerar a convicção de que a simples posse da Palavra e a sua leitura, mesmo sem compreensão, é tudo que necessitamos para nossa salvação, então ela se transforma em uma falsidade; porque não conduz à iluminação e à sabedoria. Ao contrário, fecha a mente à pesquisa do sentido real e da significação prática do Livro Divino, reduz o seu poder regenerativo e religioso à mera repetição de sons vazios — neste extremo, a Palavra torna-se um fetiche e a religião uma superstição.
Onde esta forma inferior da religiosidade cristã é substituída por um ponto de vista mais racional, pensa-se que a santidade da Palavra reside nos seus ensinamentos morais e éticos. Aí reside o seu poder para elevar a raça humana. Suas grandes idéias morais têm fornecido meios muito potentes para reformar a vida dos homens e dirigir suas relações com o próximo. Enunciadas com a simplicidade e a força convincente que é peculiar aos escritos inspirados, elas têm mudado todo o curso dos acontecimentos humanos, e têm influenciado profundamente toda a história do mundo.
Tudo isso, sem dúvida, é verdade. Contudo, nesses ensinamentos morais não se encontra a chave da santidade da Sagrada Escritura. Eles comprovam essa santidade, realmente, em algumas partes, mas não existem em outras. Pois há grande número de fatos citados na narrativa sagrada onde essas idéias morais não se encontram abertamente. Alguns são escritos de acordo com padrões de moralidade que foram há muito tempo repudiados, intelectualmente, nas nações civilizadas — padrões estatuídos tão claramente que não podem ser interpretados como moralizadores sem fazer violência ao seu conteúdo manifesto. De outros, não se pode dizer que contenham qualquer ensinamento moral no que está ao alcance de quem estuda com afinco a sua significação externa. Longas listas de nomes nos livros históricos e ininteligíveis combinações de palavras nos proféticos servirão como exemplo.
Com relação a estas partes — e elas são muitas — os que sustentam este ponto de vista, ou retornam à simples fé da ignorância afirmando que elas são santas de um modo misterioso e incompreensível, ou então, com mais lógica, têm que considerá-las como desprovidas de santidade, como meros ensinamentos históricos de nenhum valor real e visível.
Examinada sobre esta base, a concepção da Palavra como santa, em virtude apenas de seus ensinamentos éticos e morais, revela-se insuficiente como fundamento da fé racional na inspiração Divina das Escrituras. Isto faz com que sejam consideradas como Divinas somente em parte. Leva-nos a misturar, no pensamento, o que é Divino com o que é falível e humano. A responsabilidade de determinar o que deve ser recebido como um elevado e santo padrão moral e o que precisa ser rejeitado como indigno da Palavra Divina, é assim lançada sobre o falível julgamento do homem.
Aqueles que levam mais longe os seus estudos, guiando-se por uma luz puramente natural e sem uma justa concepção de onde encontrar a santidade da Palavra chegam, pelo raciocínio, a destruir quase completamente toda fé viva em sua natureza Divina e infalível. Pela análise crítica, pela pesquisa histórica, pela acurada investigação de sua significação puramente externa, a Palavra é despedaçada, reorganizada e arranjada de acordo com padrões humanos, dando-se cada vez mais, às suas diferentes partes, um valor puramente tradicional com utilidade apenas para os historiadores e arqueólogos. Como um guia para a vida espiritual, como um meio vital para a salvação humana, como um medium Divinamente indicado para dar a verdade religiosa e a sabedoria espiritual, a Palavra é, mais ou menos, posta de lado.
Nem pode ela ser restabelecida no seu justo lugar como “Tabernáculo de Deus com os homens” enquanto não for dada uma idéia justa e compreensível de sua santidade. Só então ela poderá começar a ser corretamente usada como meio de nossa salvação e tornar-se, uma vez mais, o centro do poder espiritual — a fonte da sabedoria, a fonte da vida e o caminho para o céu.
Esse conhecimento é hoje revelado pelo Senhor em Sua Segunda Vinda, e está contido especialmente na exposição da verdadeira significação interna do 34o capítulo do Êxodo. Aí se descreve como Moisés, o grande líder do povo israelita, de acordo com a ordem Divina, subiu ao topo do Monte Sinai, levando nas mãos as duas tábuas de pedra, a fim de se encontrar e se comunicar com Deus e como, tendo feito isso, Jeová desceu em uma nuvem densa e escreveu sobre as tábuas as palavras da convenção — os Dez Mandamentos. E quando Moisés desceu do monte, depois de quarenta dias e quarenta noites, sua face brilhava, tendo ele, por isso, a coberto com um véu.
Nesta dramática história está contido o ensinamento de que a Palavra é santa, não apenas como um livro que possui um poder Magic, transmissível pela sua simples posse, mas como um repositório de Divina Sabedoria que reside, não apenas em algumas partes isoladas, mas está oculta em cada versículo e em cada palavra. Se as próprias Escrituras literais fossem suficientes para a salvação, independentemente de qualquer entendimento genuíno delas, então seria desnecessário que o Senhor nascesse no mundo. Pois a Palavra do Antigo Testamento, que os judeus possuíam, era por eles reverenciada, profundamente estudada e estritamente observada quanto a seus preceitos literais. Contudo, o Senhor condenou-os, e especialmente aos escribas e fariseus que eram entendidos na lei, porque eles consideravam “a letra que mata” em vez do “espírito que vivifica”.
É o “entendimento da Palavra” que tem constituído sempre e mantido a Igreja entre os homens; e quando ele se perde ou é profundamente pervertido, um verdadeiro entendimento é de novo estabelecido para que a raça humana não pereça.
Para que a Palavra seja compreendida, não apenas em passagens isoladas, mas do começo ao fim, e de modo a se tornar instrutiva nas coisas da vida eterna, impõe-se a necessidade de existir escondida no seu interior uma significação interna, um sentido espiritual. É devido a esse sentido espiritual que a Palavra tem vida. Aí reside a Sabedoria de Deus. Aí reside o conteúdo da verdade eterna, a constante ministração da obra prática da salvação das almas humanas. É devido a esse sentido espiritual que a Palavra é santa, e é dele que a Palavra deriva todo seu poder para elevar e salvar.
Na história do Êxodo está acentuadamente marcado o contraste entre esta viva significação interna e o simples sentido literal da Palavra. Pois o primeiro é representado por Moisés, o forte e dominante guia da nação judaica, enquanto que o último é representado pelas tábuas de pedra sem vida, que ele sustinha em suas mãos.
Aquelas tábuas de pedra foram talhadas, aparelhadas e preparadas por Moisés. A letra da Escritura foi formada pela Divina Verdade viva, na mente dos profetas, maravilhosamente moldadas para que pudessem se tornar o continente da Divina Sabedoria. Para os que não a compreendem, ela é como uma pedra lisa, em que nada foi ainda escrito pelo dedo de Deus. Seu poder é potencial, devido à ordem maravilhosa em que está moldada. Esse poder não pode se tornar efetivo enquanto o uso a que se destina não for compreendido, ou enquanto não for elevado para que Deus escreva sobre ele “as palavras da Convenção, os Dez Mandamentos.
Como esta “tábua rasa”, esta revelação ininteligível, este livro selado, pode tornar-se vivo e poderoso para salvar, na mente de cada ardente pesquisador da verdade, está descrito na história de como estas tábuas de pedra vazias receberam, sobre sua lisa e inexpressiva superfície, a Divina inscrição. “E Moisés levantou-se pela manhã de madrugada e subiu ao Monte Sinai, como o Senhor lhe tinha ordenado, tomando em sua mão as duas tábuas de pedra”.
Em todo homem, a Palavra de Deus é, a princípio, um livro selado, cujo conteúdo é inteiramente desconhecido. Não obstante, este livro deve ser considerado como santo, como separado dos demais livros, como ditado pelo poder Divino, e isto antes que se possa perceber porque ele é santo, ou de que modo ele possui o poder de Deus. Tal é a fé simples da criança. Quando a Palavra é lida com este reconhecimento singelo de sua santidade, a mente do leitor abre-se para o céu e para o Senhor. E embora não possa compreender coisa alguma do que está escrito, os anjos que estão com ele compreendem e tiram daí indizível sabedoria que os enche de prazer. Este prazer eles podem até certo ponto transmitir à criança que encontra, por isso, nas páginas sagradas, uma fonte de fascinação que nenhum outro livro tem.
Este influxo do céu, sempre que a Palavra é lida com uma fé simples, constitui o fundamento de seu poder final e da verdade que dá substancialidade a essa crença em sua misteriosa eficiência, independentemente da compreensão intelectual de sua significação, compreensão que, por fim, torna-se uma superstição. É um poder real e o fundamento sobre o qual, somente, seus fins e propósitos mais elevados podem ser realizados. Infundir nas criancinhas o sentimento da santidade da Palavra Divina e um profundo e permanente respeito por ela é dotá-las com uma fonte de eterna felicidade. É conduzi-las ao Senhor para que Ele ponha as Suas mãos sobre elas e as abençoe. É colocar em suas mãos as tábuas de pedra, embora ainda não escritas, mas já talhadas e preparadas por Moisés para o elevado uso a que foram destinadas.
Nem sempre passamos além deste estado de fé simples. Embora nos adiantemos em inteligência e sabedoria, ficando intelectualmente em condições de aprender a significação do Livro Divino, entretanto será muito pouco o que poderemos alcançar realmente, comparado com o que permanece incompreensível e incompreendido. Não podemos perceber coisa alguma da verdade espiritual contida nas Escrituras a não ser na medida em que somos ilustrados pelo Senhor. É somente sobre a base da fé simples, de um confiante reconhecimento da santidade da Palavra e do seu poder peculiar, mesmo onde é compreendida, que o caminho da inspiração e do influxo pode ser aberto.
A Palavra deve permanecer para nós, durante toda nossa vida, um Livro Santo, não apenas quanto àquelas poucas passagens que se tornaram luminosas em nossa mente, mas também quanto a todo versículo e a toda palavras, cuja significação e aplicação permanecem ainda ocultas às nossas vistas. Devemos tê-la em nosso poder. Devemos conservá-la à parte dos demais livros, em nossa casa e em nossa mente, e devemos lê-la atenta e constantemente, sabendo que, quer a compreendamos, quer não, o Senhor age por meio dela com infinito poder para elevar-nos e salvar-nos. Porque “se não recebermos o Reino de Deus como uma criancinha, de modo algum entraremos nele”.
Isso não quer dizer que devemos permanecer na crença supersticiosa de uma espécie de poder mágico. Pois, sabendo que estamos cercados de anjos e espíritos que operam sobre nós de acordo com o que pensamos e amamos, e que a Palavra de Deus, em tão grande parte incompreensível para nós, contém tesouros de indizível sabedoria para os que estão no céu, estaremos em condições de compreender, racionalmente, o que de fato é esse poder aparentemente mágico.
Não devemos nos contentar com uma fé meramente infantil. Necessitamos do Livro Divino, não apenas pela inspiração e o prazer que provém da presença geral do céu, mas também pela instrução que nele podemos aurir. Precisamos de direção. Precisamos de solução para os problemas práticos da vida. Na possibilidade de nos dar essas coisas reside o poder real da Palavra e o segredo de sua santidade. Devemos portanto reconhecer que ela é santa e que o é porque contém em si a sabedoria de Deus, em todas e em cada uma de suas partes. E com este reconhecimento virá o desejo e o anseio de receber a sabedoria, para que possamos comer “o pão que vem do céu e dá vida ao mundo”.
Se tal sabedoria se encontra em qualquer parte da Palavra, então deve ser alguma coisa mais elevada do que um ensinamento moral. Deve ser alguma coisa que não se pode ver ao primeiro relance. Deve consistir em uma significação interna composta de verdades espirituais, de leis eternas, tão afastadas das vicissitudes e variações dos negócios humanos que podem permanecer constantes e conservar vivo todo o seu valor através das idades. Este conhecimento de um sentido interno, este reconhecimento de sua qualidade espiritual no esforço para interpretar as Escrituras, afastará completamente o nosso pensamento das coisas do mundo e nos fará olhar para o céu e para o Senhor em busca de ilustração. Então a letra da Palavra será elevada para Deus, para que Ele Mesmo nos revele a sua verdadeira significação. “E levantou-se Moisés pela manhã de madrugada, e subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe tinha ordenado, tomando em sua mão as duas tábuas de pedra”.
A “manhã de madrugada” — a aurora de um novo dia — significa aqui o mesmo que a infância — o começo da vida do homem. É o estado da fé simples em que reconhecemos a nossa própria ignorância, e em que ainda nos voltamos com confiança para a Palavra, como sendo o Livro Santo, em busca de auxílio. O Monte Sinai, erguendo-se com vigorosa majestade acima da planície arenosa, representa o céu — aquele reino do céu que está dentro de nós. Representa aquele céu que nos é aberto quando nos aproximamos da Palavra Divina para que os anjos se aproximem de nós para beber da fonte da salvação. Neste céu, então, o sentido literal da Palavra pode elevar-se, como Moisés que subiu “ao monte Sinai, tomando em sua mão as duas tábuas de pedra”.
Todo homem está, por assim dizer, na base de uma coluna que se alarga para cima. Mais perto dele estão os espíritos do mundo dos espíritos; acima destes estão os anjos do primeiro céu que é o céu inferior; acima destes, ainda, estão as sociedades do segundo céu, que é o céu médio; e acima destas estão as sociedades do céu mais íntimo, que é o céu superior.
Quando a Palavra é lida pelo homem com uma fé simples, cada uma destas categorias de seres tira dessa leitura o alimento apropriado à sua vida espiritual. Aqueles que estão mais perto do homem compreendem-na simplesmente, percebendo só as suas generalidades, embora a sua percepção exceda de muito a dos homens. E cada grau mais elevado tira daí uma sabedoria mais interior; os anjos naturais, aquilo que é natural; os anjos espirituais, o que é espiritual; e os anjos celestiais, o que é celestial. Desta forma, o sentido interior ascende até ao Senhor. Assim subiu Moisés ao Monte, “tomando em sua mão as duas tábuas de pedra”; o sentido literal dessa passagem é incompreensível para o homem que a lê, mas desdobra-se em maravilhas internas para todos os céus.
Mesmo quando sobe, ele ainda permanece em branco para nós. Os anjos, porém, compreendem as maravilhas de sua significação e se rejubilam. Não é permitido aos anjos e aos espíritos nos dar a mínima instrução. Eles não nos podem ensinar. Apenas nos podem fazer sentir a sua alegria como uma espécie de elevação e de exaltação, como um indefinível sentimento de beleza e de poder que nos fascina e nos encanta quando lemos a Palavra.
E assim, mesmo ao alcançar o cimo da Montanha de Deus, as tábuas de pedra que Moisés levava na mão permaneciam em branco. Foi somente quando Deus desceu em uma densa nuvem e aí se encontrou com Moisés e lhe falou durante quarenta dias e quarenta noites, durante as quais ele não comeu nem bebeu, que a inexpressiva superfície da pedra recebeu a Divina inscrição. Então, pela primeira vez, a letra da Escritura muda para nós de um Livro incompreensível, possuindo uma estranha santidade e um estranho poder, para a verdadeira Palavra de Deus, a revelação de Sua Lei, a manifestação de Sua Misericórdia e de Seu Amor, o contato vivo de Sua mão guiadora, em que encontramos real conforto e proteção. Pois, escritos na pedra pelo dedo de Deus, encontraremos as “palavras da Convenção, os Dez Mandamentos”.
Aqui está o modo pelo qual o Senhor nos guiará. Aqui está indicado o caminho pelo qual Ele efetuará a nossa salvação. Nenhuma forma de direção humana, de ensinamento humano, de associação pessoal, pode substituir esta aproximação direta do Senhor por meio de Sua Santa Palavra. É pela letra da Palavra e dos Escritos, com uma fé simples de criança e ao mesmo tempo com o reconhecimento dos maravilhosos tesouros de sabedoria celeste contidos no seu interior, e com o ardente desejo de receber essa sabedoria na medida em que o Senhor no-la pode dar, que, acima de qualquer outro meio, podemos ser trazidos à presença do Senhor e elevados à esfera dos anjos para que Ele possa se comunicar conosco no topo da montanha e escrever nas tábuas as palavras da Convenção, os Dez Mandamentos.
Amém.

•   1ª Lição:     Êxodo 34
•   2ª Lição:     Mateus 18, 1-14
•   3ª Lição:     De Verbo II ou H. H. 310