A PROTEÇÃO DA INOCÊNCIA


Sermão pelo Rev. Hugo Lj. Odhner


“Mas qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de atafona,
e se submergisse na profundeza do mar”.

(Mateus, 18,6)

É geralmente reconhecido pelos que recebem a Doutrina Celeste que todos os usos da Igreja giram em torno da evangelização e do culto, simbolizados pelos dois sacramentos: o Batismo e a Santa Ceia.
A evangelização, ou divulgação do novo Evangelho do Segundo Advento, significa a instrução em todas as suas formas, tanto públicas como privadas. Inclui também a leitura individual da Palavra e da Doutrina, a assistência à instrução pública, o esforço para transmitir a Doutrina aos filhos e a outras pessoas em condições de recebê-la; inclui ainda os nossos próprios pensamentos e as nossas atividades sociais. Pois todas estas coisas têm relação com a fé a que nos consagramos pelo batismo e a confissão.
O uso do culto, por outro lado, é externamente expresso pela prece e a humilhação, e pelos atos de piedade que culminam na Santa Comunhão da Ceia do Senhor, onde a conjunção do homem com a viva presença do Senhor é, finalmente, representada pela genuflexão, não apenas da vontade do homem, mas também do seu próprio corpo, para dispor-se à recepção da Divina Misericórdia. Isto constitui apenas o externo do culto, o sinal externo e conveniente, o selo da sinceridade e o mais completo reconhecimento da necessidade que temos de renunciar ao orgulho e à presunção, e de colocar a Doutrina na vida. O culto externo torna-se genuíno quando unido ao culto interno, que consiste em desempenhar, diariamente, por meio de uma vida de amor ao Senhor e de caridade para com o próximo, os usos que intimamente têm em vista o bem eterno da espécie humana.
Todos os usos efetivos que o corpo organizado da Igreja procura preencher se referem à Evangelização e ao Culto. São usos que servem para promover o bem estar espiritual de seus membros e participantes, de seus filhos e de outras pessoas a quem podem alcançar pela palavra falada ou escrita, ou que podem ser trazidas para a sua esfera de ação. Mas estes usos, visivelmente executados no presente — nestes dias de coisas pequenas, nesta época de devastação espiritual em que as nuvens do julgamento final ainda cobrem a terra — são de alta significação. Não são feitos para esta época somente, mas visam também preservar a semente da Igreja para as colheitas futuras que ainda nem foram semeadas. Destinam-se a perpetuar o segredo revelado sobre a vida: a lei da caridade e da fé racional, da prática e do julgamento espirituais. E, além disso, não devemos esquecer que o trabalho da Igreja transcende este mundo e alcança o mundo dos espíritos, afetando os estados de todos os que atravessaram as portas da morte.
Certamente os usos da Igreja não devem ser medidos pelo trabalho dos homens, nem pelo seu número, nem mesmo por seu zelo; pois os usos espirituais são preenchidos pelo Senhor somente; sendo a Igreja, como instituição, apenas um mordomo que administra os bens do Senhor. Dando o nosso apoio aos usos da Igreja, não adquirimos mérito algum. Pois, participando desses usos, ganhamos muito mais do que damos. A Igreja é como um tesouro escondido num campo, para cuja aquisição o homem gostosamente vende tudo o que tem. É como uma pérola de grande preço, a que o nosso trabalho ou habilidade não pode dar maior brilho. Não se trata de saber com que podemos contribuir para a Igreja, mas se deixaremos ou não perecer os seus usos naquilo que nos diz respeito. A Igreja não morrerá; mas seus usos podem perecer entre nós. Sua presença em nosso meio é um estímulo. Não pode haver neutralidade em face de suas atividades. É o fundamento do futuro que podemos fortalecer ou arruinar no setor em que vivemos. O Senhor, referindo-se aos que estão fora da Igreja, disse, com efeito: “Porque quem não é contra nós, é por nós” (Marcos 9,40). Mas falando para a Igreja, Ele disse: “Quem não é comigo, é contra mim; quem comigo não ajunta, espalha” (Mateus 12,30).
É nossa, então, a responsabilidade; não a de executar a obra essencial da salvação, que só pode ser feita pelo Senhor, mas a de proteger os usos Divinos da Igreja contra nós mesmos, contra os estados corruptos e desordenados que introduzimos nela, trazidos do mundo ou de nossas próprias ambições, cobiças ou dúvidas — para que não espalhemos aquilo que o Senhor ajunta.
Pode-se muito bem dizer que a função primária da Igreja é de proteção. É esta a razão porque o Senhor fala da Igreja como sendo um “pequeno rebanho”, ou um redil que precisa ser guardado. O amor distintivo da Igreja — derivado do amor do Senhor e da Doutrina Divina — é o amor de salvar as almas, o amor de guardá-las para que os males e as falsidades não infestem e pervertam, não desencaminhem e destruam a vida espiritual dos homens. Este amor deve estar internamente presente em todas as coisas da Igreja. Deve ser o motivo profundo de nossos esforços periódicos para o arrependimento, que é o primeiro passo da Igreja no homem. Pois o arrependimento não pode começar com o objetivo meramente egoístico de procurarmos a nossa própria salvação espiritual; intimamente ele deve repousar no interesse que precisamos desenvolver em nós pelo estado dos outros, esforçando-nos para que os nossos males não os prejudiquem e não obstruam a obra de salvação do Senhor.
Sem este desejo de proteger os estados dos outros, mesmo contra nós próprios, não pode haver Igreja. Sem isso o homem não é da Igreja. Pois este interesse pela salvação das almas é o que constitui a caridade espiritual.
O Senhor, quando estava no mundo, falou sobre esta doutrina em parábolas. Os Seus discípulos, tendo-lhe perguntado quem era o maior no reino do Céu, Ele reprovou o seu amor à proeminência dizendo-lhes, depois de haver feito sentar uma criança no meio deles: “Aquele que se humilhar como este menino, este é o maior no reino dos Céus”. “Se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo nenhum entrareis no reino dos Céus” (Mateus 18,1-5).
Posições, riquezas, abundância de conhecimentos, ou mesmo uma longa lista de boas obras executadas — nada disso pode abrir o Céu ao homem. A essência do Céu é a inocência — representada pelo procedimento ingênuo da criança. O Senhor disse: “Mas qualquer que escandalizar um desses pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de atafona, e se submergisse na profundeza do mar”.
Aqui está a lei da salvação na forma mais simples em palavras de que os cristãos, através dos séculos, têm recebido instrução e consolo, palavras que as falsas doutrinas não podem perverter inteiramente. É da lei da regeneração que o homem deve nascer de novo, deve entrar outra vez no estado governado pela qualidade característica da infância, para que possa entrar no Céu.
Aquilo que “nasce de novo”, durante a larga vida de lutas pela regeneração, é a inocência. Na linguagem moderna, a inocência significa apenas isenção de responsabilidade, ausência de pecado ou de culpa. Da forma em que é usada nos Escritos, porém, essa palavra significa alguma coisa mais, significa “o desejo de ser conduzido”, de ser guiado pelo Senhor.
A inocência é o primeiro estado da criança recém-nascida, — é uma inocência externa baseada na ignorância. E a inocência é também o último estado — o fim da regeneração — mas então é uma inocência fundada na sabedoria. A inocência, porém, não pertence ao homem em tempo algum; não faz parte do seu proprium, pois é sempre uma dádiva do Senhor. É, na verdade, uma renúncia do eu, um esquecimento do proprium; e quando baseada na sabedoria, torna-se o reconhecimento, de coração, de que, em nossos próprios pensamentos e em nossa própria vontade nada mais somos que mal e falsidade, e de que todo o bem e toda a verdade pertencem ao Senhor somente. Isso importa em amar ao Senhor como o único Pai e desejar seguir, a Seu chamado, para onde quer que nos queira levar.
A inocência é a essência íntima de todo bem celestial e espiritual. É o receptáculo de todas as coisas da vida celeste. Se a inocência perecesse, nenhum amor ao Senhor poderia existir entre os homens, nem amor algum à Palavra do Senhor ou à Sua Igreja e, portanto, não haveria Igreja. Sem inocência não poderia haver amizade genuína, nem verdadeiro amor conjugal, nem lar verdadeiro — na realidade, não haveria instrução, nem usos, nem qualquer sociedade humana estável sobre a terra.
A inocência é o centro e o núcleo de toda sociedade celeste. É o primeiro e o último em tudo da vida humana. É a única coisa que liberta o homem da censura, da culpa ou do erro, em todos os estágios de sua vida. É essencial tanto para o homem mais sábio como para o gentio mais ignorante; tanto para o jovem triunfante em sua pujança, como para o homem maduro, clarividente e bem intencionado, em busca de conhecimentos e de competência; tanto para o velho, encurvado e fatigado, como para o bebê desamparado. Ela dá a todos aquela docilidade plástica, aquela disposição afirmativa que permite moldá-los em novas formas para progredirem na fé e na sabedoria que levam à vida eterna. A inocência está no coração de todos os estados da Igreja.
A palavra “escândalo” na expressão do Senhor: “Qualquer que escandalizar um desses pequeninos”, literalmente significa “pôr uma armadilha ou um tropeço”. Significa tirar partido da inocência, desencaminhar, seduzir para o mal, e também ofender, chocar ou perverter. Por isso o Senhor continua: “Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos; mas ai daquele homem por quem os escândalos vêm!”
É absolutamente necessário que a criança perca sua inocência quando entra na luta pela existência, quando se desfaz a ignorância que a protegia do conhecimento do mal e do erro, e o jovem vê se abrirem diante dele as portas do mundo. É absolutamente necessário que a confiança e a segurança infantis sejam sacudidas por novas e sedutoras experiências. É absolutamente necessário que o jovem e o adulto se tornem cônscios do pecado e vejam que o seu primitivo idealismo e entusiasmo se mostram difíceis de manter em face do cinismo, da imoralidade e da competição brutal do mundo; e olhem para trás com impaciência e um tanto envergonhados dos seus pensamentos pueris e de sua confiança infantil.
“É mister que venham escândalos”, que o homem, quando vem a conhecer o triste mundo que o cerca, encontre muitas desilusões e sofra muitos choques em sua inocência. “Mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!” Ai daquele que sente prazer em introduzir a inocência no mal ou no crime, ou que acha graça quando a confiança infantil é lograda e sua fé destruída. Mesmo o mundo que está em torno de nós, conivente em tantos males, condenaria muitas vezes esse homem. Pois todo homem pode sentir, por uma percepção comum, que há na inocência uma beleza que nada mais pode igualar, beleza que é secretamente invejada, mesmo pelos maus que, em vão, se esforçam por imitá-la.
Contudo, o que o mundo não compreende é que esta inocência vem do Senhor como uma dádiva para todo homem na sua infância; uma dádiva que reveste, interiormente, tudo em nós, mesmo quando a satisfação, a prudência e os preconceitos da idade posterior façam retirar-se de nossas palavras, de nossas ações e de nossos pensamentos superficiais; uma dádiva pela qual o Senhor nos dá a liberdade para nos reformarmos e, depois, nos regenerarmos, e que pode — e deve — ser trazida novamente para todos os estados de nossa mente natural, como uma fonte íntima de nossa vontade, de nossos pensamentos e de nossa vida.
É para proteger essa preciosa dádiva da inocência que a Nova Igreja surgiu no mundo. Todos os seus usos de culto e de instrução têm isto por fim; não (já se vê) para perpetuar a inocência da infância, mas para convertê-la na inocência da sabedoria. É a esta conversão que a Igreja deve prestar assistência durante toda a vida do homem. A sabedoria do Céu é concedida somente aos que se humilham como uma criancinha: não diante do mundo, nem muito menos diante do mal do mundo, mas diante do Senhor quando O reconhecemos nos usos da vida. Quando nestes usos temos em vista um bem do amor, uma causa nobre e digna, nós nos humilhamos diante disso e nos tornamos seus servidores e ministros e, assim procedendo, estamos ministrando ou servindo ao Senhor.
Mas é inteiramente diferente quando o homem encara os usos — mesmo os da Igreja — como alguma coisa que lhe pode ser útil. Qualquer que seja a colheita que ele então venha a recolher dos conhecimentos do mundo ou das verdades da Palavra, ele a moerá no moinho de sua própria inteligência, produzindo falsos raciocínios que lisonjearão o seu orgulho, satisfarão a sua vaidade e endurecerão o seu coração para aquela inocência que é a única força capaz de resistir ao mal e tornar reais as suas virtudes.
Há especialmente três males que os candidatos a membros da Nova Jerusalém devem evitar e manter em aversão: o adultério, o amor de dominar e o dolo (S. D. 6053). Pois estes três males, em todas as suas variadas formas, escandalizam a inocência. Eles não só destroem os restos da inocência no homem, mas, ainda, quando se alastram, impossibilitam a Igreja de proteger os estados insipientes da fé e da caridade que ela procura desenvolver.
Pesa assim sobre todo homem da Igreja a responsabilidade de abster-se de escandalizar a inocência dos outros, quaisquer que sejam os estados de tentação ou de dúvida que o infestem. Isso é reconhecido na instrução gradual que deve ser dada às crianças na escola e no lar.
A instrução prematura, mesmo das verdades — verdades demasiado interiores para o estado — está sujeita ao perigo da má compreensão e do abuso. E o esforço da Igreja deve ser no sentido de alimentar cada estado com as verdades que lhe são apropriadas, de modo a não fazer violência à inocência de um estado anterior; pois é a inocência que dá continuidade ao desenvolvimento espiritual do homem.
Por isso — “qualquer que escandalizar um desses pequeninos” — qualquer que escarnecer e ridicularizar a inocência incipiente, que é a alma e a fonte de todos os estados puros do homem — “melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de atafona, e se submergisse na profundeza do mar” —, o seu lugar não é na Igreja. A esfera da Igreja deve ser mantida como a guarda da sinceridade e da inocência. Para que não se torne um hipócrita, ou para que não profane as coisas santas do Céu, é melhor que ele mergulhe nos negócios mundanos e egoísticos, levando consigo a sua mó. Pois aquele que menospreza a inocência será, por fim, necessariamente arrastado para fora do pensamento e da vida espiritual pelo peso do seu racional natural, representado pela mó. Sendo egocêntrico e perverso, ele argumentará sem cessar em defesa das falsidades e dos males que ama e será responsabilizado por isso.
Nada é mais perseguido, mais desdenhado e torturado do que a inocência. Entretanto, nada é mais eterno e mais protegido contra os ataques dos homens. O seu influxo persiste mesmo em uma geração má. Ela é a essência universal de todo bem humano, ainda que poucos a recebam de forma consciente. Todavia ela não é do homem. “Qualquer que receber em meu nome um menino tal como este, a mim me recebe”. Ela é Divinamente Humana. É o “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”.
Amém.

Lições:   • Gênesis 3,1-21
• Mateus 18,1-14
• A. C. 9301