A PROSPERIDADE DO MAU


Sermão pelo Rev. W. Cairns Henderson


“Descansa no Senhor, e espera n’Ele; não te indignes por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do homem que executa astutos intentos. Deixa a ira, e abandona o furor: não te indignes para fazer somente o mal. Porque os malfeitores serão desarraigados;
mas aqueles que esperam no Senhor herdarão a terra”.

(Salmo 37, 7-9)

O mal só existe porque é permitido pelo Senhor. E tendo-o permitido na sua origem — que não é d’Ele, nem tão pouco do bem, mas do homem —, não podia impedi-lo de continuar a existir sem tirar a liberdade do homem; liberdade que lhe dá a faculdade de voltar ao Senhor, de unir-se a Ele, e de receber, conseqüentemente, as bênçãos da vida eterna no céu. O Senhor, consentindo a existência do mal, sabia que, pelo ulterior reerguimento da raça humana e sua conseqüente retirada do mal — mal que ela mesma havia originado —, os homens poderiam chegar, finalmente, a alcançar um grau de perfeição muito mais elevado do que lhes seria possível no tempo em que o mal começou. Tendo, por esta razão, permitido que o mal surgisse, consente agora que ele continue por causa da salvação humana. Com efeito, o homem nasce agora nos males de toda espécie, males de que precisa ser libertado pelo arrependimento, para que possa ser salvo; e isso só pode ser feito permitindo o seu aparecimento a fim de que se tornem conhecidos.
O mal, que só existe porque o Senhor o permite, está estritamente sob o Seu controle; sendo que só têm permissão para aparecer os males que podem servir para um fim bom, de que somente Ele tem conhecimento. O mal está assim sujeito a Leis Divinas — às chamadas leis de permissão, que são também leis da Divina Providência.
Quando o Senhor criou o universo, o Seu propósito final era — e continua sendo — a formação de um céu angélico constituído pela raça humana que Ele colocou sobre a terra, provida de tudo o que é necessário ao seu bem-estar. Para satisfação de Seu Divino Amor, Ele desejava que houvesse outros seres fora de Si mesmo, aos quais pudesse transmitir o Seu Amor e que pudessem unir-se a Ele para gozarem a felicidade eterna do céu, desempenhando usos que lhes dessem prazer. Por Sua Infinita Sabedoria criou, para isso, o homem como o único ser capaz de satisfazê-lo, tornando-se assim eternamente feliz. Criou-o de forma tal, que pudesse, livre e espontaneamente, corresponder ao Seu Amor e unir-se a Ele, adquirindo os dons espirituais por um processo de desenvolvimento gradual.
A tarefa do Senhor consistia, então, em preservar essa forma, mantendo-a na ordem em que tinha sido criada e levar os homens a estados de perfeição cada vez mais elevados. As atividades Divinas empregadas nesse sentido constituem o que se chama a Divina Providência. Quando o mal veio ao mundo, essa forma foi pervertida e a ordem alterada. Daí por diante, a ação da Providência desdobrou-se numa dupla atividade, consistindo em um esforço incessante para restaurar o que havia sido pervertido e alterado, e na perpétua defesa e manutenção do que é restaurado.
Embora profundamente ocultas, estas duas atividades, que constituem a Divina Providência, estão por detrás de todos os acontecimentos, por mais insignificantes que sejam. Muitas vezes, entretanto, parece que assim não acontece; pois enquanto a segunda atividade consiste na previsão do bem — a única coisa que o Senhor provê —, a primeira importa em permissões, isto é, em coisas que não são queridas pelo Senhor e, portanto, não são providas, mas Ele não pode impedir que aconteçam, uma vez que se destinam a promover a salvação humana.
É indispensável permitir que os homens ajam com liberdade, de acordo com o que lhes parecer acertado; que lhes seja permitido praticar o mal para eu este não permaneça oculto; que não sejam compelidos por meios externos a acreditar e a amar as coisas da religião e que, portanto, a ação direta da Divina Providência permaneça absolutamente secreta. Conseqüentemente, muitos males existem entre os homens, produzindo injustiças, desigualdades, escravidão e miséria. Mas por trás de toda a atividade própria dos males, e da crueldade dos homens, está a Divina Providência esforçando-se, sem cessar, para torcer o mal, obrigando-o a servir o fim que nunca deixa de ter em vista: o estabelecimento do reino eterno do Senhor nas mentes dos homens sobre a terra. Qualquer que seja a aparência, o Senhor está sempre provendo o bem espiritual e eterno para os que O adoram verdadeiramente, e permitindo que os outros pratiquem o mal, mas só o mal que pode vir a prestar para obtenção de um uso oculto de Seu Reino.
Essa crença na Divina Providência é parte integrante da fé viva, do culto genuíno e do amor a Deus. Com efeito, os que não reconhecem a Divina Providência, de modo algum adoram a Deus em seus corações; mas, ao contrário, adoram-se a si mesmos — e, especialmente, à sua própria prudência, encarando a natureza como criadora e sustentadora do universo. Pode parecer que essa afirmação seja exagerada; um momento de reflexão, porém, mostrará que está certa.
O homem levanta altares às coisas que mais ama. Se negar que existe uma Divina Providência por trás de todos os acontecimentos humanos, precisará encontrar uma explicação para eles e acabará por acreditar que o sucesso ou a falência de seus atos dependem exclusivamente de sua própria prudência ou imprudência. Se preferir a qualquer outra a sua própria explicação, considerando-a superior aos ensinamentos da Palavra e, conseqüentemente, colocar acima de tudo a sua própria prudência, estará amando a si mesmo em vez de amar a Deus. Assim sendo, atribuirá a origem e a ordem do universo à natureza, pois nega a única fonte de onde este universo se originou.
Aqueles que adoram a si mesmos e à natureza encontram, nos acontecimentos que diariamente ocorrem diante de seus olhos, muita coisa com o que se confirmar contra a Divina Providência. Observam, por exemplo, que as conspirações, os planos e as fraudes dos maus, muitas vezes são bem sucedidos, mesmo contra os que são piedosos, justos e sinceros; que a injustiça freqüentemente triunfa sobre a justiça nos próprios tribunais; e que a desonestidade, na maioria das vezes, parece trazer maiores vantagens nos negócios do que uma ação honrada e direita.
Vêem os homens maus cobertos de honrarias e ocupando altas posições no estado e na Igreja, nos negócios e na sociedade, enquanto outros que levam uma vida verdadeiramente religiosa ficam relegados a posições humildes e são desprezados. Vêem homens maus acumular riquezas, vivendo no luxo e no esplendor, enquanto os que adoram a Deus vivem muitas vezes na pobreza, cercados de coisas miseráveis e sórdidas. E como acreditam que, se houvesse uma Divina Providência, os bens, as honras e os prazeres mundanos seriam distribuídos de acordo com o mérito de cada um, são levados, em face dessas anomalias, cuja causa desconhecem, a negar a sua existência. O que eles realmente pensam é que, se houvesse uma Divina Providência, deveria agir segundo o que lhes parece acertado, e como não vêem provas disso, isto é, de que a Providência se conforma com as suas idéias, concluem que ela não existe. Com pessoas dessa espécie, nada se pode fazer.
Há, porém, outras pessoas que, antes de aceitar a idéia da Providência Divina, desejam, de uma forma positiva, estudá-la convenientemente. Para estas pessoas a prosperidade dos maus e a miséria de muitos homens bons constituem também um sério problema. Estes, entretanto, podem encontrar a sua solução estudando a Doutrina Celeste, onde esse problema está plenamente resolvido.
Se observarmos com atenção, verificaremos que, neste mundo, não há relação alguma entre a bondade interna e o sucesso externo. É verdade que, aqui, nunca podemos saber com certeza quem é bom, e nunca devemos esquecer isto quando examinamos esse assunto; há entretanto muitos indícios que nos habilitam a fazer um julgamento, embora externo, apenas. Baseados nesse julgamento não se pode deixar de reconhecer como fato indiscutível que os maus, muitas vezes, não só prosperam enormemente como também fazem pelos outros muito mais do que os bons. Essa prosperidade é, sem dúvida, permitida pelo Senhor e, se quisermos compreender a razão disso, precisamos nos esclarecer plenamente sobre as duas coisas seguintes:
Em primeiro lugar, devemos saber que a Providência não se interessa pelas coisas temporais — as riquezas, as honras e as dignidades —, em si mesmas. Em tudo isso a Providência considera somente o que é infinito e eterno. A sua ação não visa fazer o homem rico e poderoso, mas torná-lo bom; não visa dotá-lo com riquezas e honras que estão destinadas a cessar com a morte, mas com aquelas verdadeiras riquezas e honras que permanecem na vida eterna. A Providência provê para o homem, não um bem-estar temporário neste mundo, mas o seu bem-estar eterno na vida futura. Por conseguinte ela considera as coisas deste mundo em relação com as coisas mais profundas do outro mundo, e as provê — o que é diferente de permiti-las — quando sua posse não acarreta para o homem, danos espirituais.
Em segundo lugar, devemos procurar nos convencer de que a prosperidade material tem, relativamente, muito pouca importância. Profundamente escondida na preocupação dos homens, a respeito do sucesso dos maus e fracasso dos bons, do esforço para adquirir posição, riquezas e poder, está a convicção de que na posse dessas coisas reside o verdadeiro gozo das bênçãos que o Senhor concede aos que fazem a Sua vontade; o que faz com que sejam elas consideradas da mais alta importância. É por esta razão que se considera injusta a sua aquisição pelos maus. Na realidade, porém, as bênçãos Divinas são coisas imensamente mais profundas e mais duradouras do que isso. Consistem no gozo de prazeres sempre novos e cada vez maiores, provenientes do desempenho, pela eternidade afora, de usos para o Senhor e o Seu Reino; usos para cujo exercício os homens foram criados. Cada um de nós foi criado para o desempenho de um uso específico, em cujo exercício encontraremos a mais profunda e duradoura felicidade, que não seria possível encontrar em nada mais.
Como os homens não podem compreender esse prazer senão depois que se tornam espirituais, eles têm a tendência para acreditar que as bênçãos Divinas estão nas riquezas, nas posições e no poder, que lhes proporcionam tão grandes prazeres. Entretanto, estas coisas, em si mesmas, não constituem, propriamente, nem bênçãos, nem maldições, pois essas expressões “bênçãos” ou “maldições”, só se aplicam ao que é humano e não ao que é inanimado. As riquezas, as posições e o poder, tornam-se maldições quando são amadas acima de tudo mais; ao contrário, tornam-se bênçãos quando são procurados como meios para o desempenho de maiores usos, isto é, quando as desejamos para empregá-las em benefício do próximo. Por conseguinte, o fato de o homem adquirir grandes riquezas, ou elevada posição na Igreja, no estado ou nos negócios, e as honras e o poder que acompanham essas coisas, não é, necessariamente uma demonstração de favor Divino ou de qualquer injustiça da Divina Providência. Nem o fracasso na sua aquisição indica desfavor Divino ou falha da Providência.
A falta desses bens materiais só é uma maldição quando o homem pensa que o é. Os que são sábios têm a certeza de que as verdadeiras riquezas, que pertencem ao espírito, tanto podem ser adquiridas pelo pobre e humilde como pelo rico e poderoso, e que somente na posse dessas riquezas é que se encontra a felicidade genuína. A felicidade que está, igualmente, ao alcance de todos os homens, sejam eles pobres ou ricos.
Com efeito, há muitos homens, que seriam arruinados moral e espiritualmente, cujo desenvolvimento potencial seria sustado e que degenerariam completamente, se a riqueza e o poder que a acompanha lhes coubessem por sorte. Em relação a esses, é um ato da mais profunda misericórdia da Divina Providência, negar-lhes essas coisas. Em síntese: aquilo a que o mundo dá o nome de prosperidade tem muito pouca importância quando comparado com as realidades que determinam a sorte eterna do homem na vida futura. Conhecendo isso, ficamos habilitados a compreender a razão por que se permite que o homem mau prospere, e bem assim que a sua prosperidade não é, de modo algum, incompatível com o conceito de uma Providência Divina, que governa a vida humana até nos seus mínimos detalhes.
O uso supremo da Divina Providência é salvar os homens. Este uso supremo está no íntimo de usos incontáveis desempenhados pelo Senhor, porque é a essência mesma de Seu Amor e o meio de alcançar o Seu objetivo final. Mas, para que esse uso supremo possa ser desempenhado, é necessário o desempenho de inúmeros outros usos, que são executados pelo Senhor por intermédio dos homens. Há, por exemplo, os usos pelos quais somos alimentados, vestidos, alojados; há outros que servem para nos instruir e educar, para preservar a nossa saúde, para nos defender dos perigos, para assegurar a nossa liberdade civil e moral, etc., etc.
E ainda o uso mais elevado, confiado aos sacerdotes, que consiste em ensinar as verdades que conduzem ao bem da vida. É indispensável que estes e muitos outros usos sejam desempenhados para que não venha a falhar o uso supremo da Divina Providência. São todos eles da mais alta importância para o Senhor e o Seu Reino, visto que é sobre a sua manutenção que repousa a esperança do estabelecimento final do Reino do Senhor sobre a terra, de onde resultará a felicidade eterna da humanidade; sendo, pois, essencial que todos esses usos sejam mantidos em pleno funcionamento.
Ora, sempre que é possível, o Senhor provê para que todos esses usos sejam desempenhados por homens bons, isto é, por homens que O amam acima de tudo, que O reconhecem e O adoram, e que se esforçam por fazer a Sua vontade em tudo. Quando, porém, esses homens escasseiam — e eles são, hoje, em número muito menor do que se imagina —, o Senhor então permite que os maus os desempenhem desde que estejam em condições de fazê-lo. Os usos, em si mesmos, ficam perfeitamente assegurados com esses homens, embora eles não se preocupem com os usos nem com a ocupação pela qual eles são executados, mas apenas com a recompensa que podem alcançar executando bem o trabalho de que são incumbidos.
O seu desordenado amor de si e do mundo muitas vezes os impelirá a agir mesmo com mais eficiência e com mais constância do que fariam homens bons não movidos pela ambição pessoal, como eles o são. Embora sendo maus os motivos que os levam a agir, nem por isso deixam de fazer bem aos outros, executando o trabalho necessário à coletividade.
Trabalhando assim com eficiência e perseverança, é natural que muitos deles obtenham as coisas pelas quais estão realmente se esforçando, pois quando os homens trabalham intensamente e bem, freqüentemente conseguem alcançar honrarias e riquezas como resultado do seu labor, independente de suas intenções. É regra do mundo — que não leva em conta os motivos, mas sim os resultados — recompensar com riquezas, posições e poder aqueles que melhor executam o seu trabalho, sem considerar a qualidade do amor que os move — qualidade esta que, aliás, não poderia ser conhecida.
A Providência permite assim que os maus prosperem porque, mesmo sem o saber, eles estão desempenhando usos indispensáveis ao Senhor e ao Seu Reino, por não haver homens bons em quantidade suficiente para o desempenho de todos esses usos.
Na economia Divina todos os homens têm seus usos, quer os executem por um amor espiritual, quer sejam compelidos a fazê-los — como acontece no inferno —, quer sejam levados a desempenhá-los inconscientemente — como acontece com os homens maus na terra, que só dessa forma podem executá-los.
A prosperidade destes homens não devia provocar indignação nem inveja, pois embora eles façam, inconscientemente, bem aos outros, não o fazem, entretanto, a si mesmos. Quando seu uso termina neste mundo e eles vão, afinal, para o inferno, toda a prosperidade em cujo gozo se achavam aqui, se desvanece, porque como o homem rico da parábola, eles já tinham recebido o seu galardão.
É esta a significação do texto: “Descansa no Senhor, e espera n’Ele; não te indignes por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do homem que executa astutos intentos. Deixa a ira, e abandona o furor: não te indignes para fazer somente o mal. Porque os malfeitores serão desarraigados; mas aqueles que esperam no Senhor herdarão a terra”. Ainda que floresçam grandemente, é apenas por curto espaço de tempo que os maus gozam as suas recompensas, pois, depois da morte, o seu verdadeiro estado aparece e eles terão a sua morada eterna no inferno. Os bons, ao contrário, sejam quais forem os dissabores e misérias que tenham sofrido neste mundo, serão salvos depois pelo Senhor e elevados ao céu.
Quando vemos os maus alcançar sucesso e os bons fracassar, por mais que isso nos choque ou nos cause indignação, não devemos ficar angustiados por isso. Devemos ter em mente que o sucesso ou o fracasso, segundo o padrão do mundo, tem uma importância muito pequena, e que existe uma Providência Divina que supervisiona e governa todas as coisas, distribuindo, por fim, justiça perfeita a todos os homens.
Mesmo os maus são utilizados pelo Senhor para alcançar os Seus sábios fins. A eles o Senhor concede, na medida de sua utilidade, a única recompensa compatível com a qualidade do seu trabalho — a recompensa que consiste na prosperidade material. A nossa obrigação é esperar calmamente por Ele, certos de que se assim procedermos tudo irá bem e não daremos entrada a paixões que conduzem o mal. Os maus devem ter os seus poucos dias de riqueza e de poder, devido aos usos que são levados a desempenhar; e nisto consiste a sua única recompensa. Aqueles, porém, que procuram o Senhor, que confiam n’Ele e se esforçam por conhecer e fazer a Sua vontade, recebem d’Ele o céu, mesmo quando ainda estão sobre a terra.
Amém.

•   1ª Lição:     Salmo 37
•   2ª Lição:     Lucas 16, 1-7
•   3ª Lição:     D. P. 217