A PRECE


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém, para que vosso Pai, que está nos Céus, vos perdoe as vossas ofensas”.

(Marcos 11,25)

Deus é onisciente. Sabe o que precisamos antes de lh’O pedirmos. Sua Sabedoria provê tudo o que é necessário à nossa vida espiritual. Sua Providência protege-nos contra o mal e conduz-nos, momento a momento, para o lugar que nos foi destinado e para a felicidade em Seu Reino Celeste. Contudo, quando esteve na terra, o Senhor mandou que Seus discípulos orassem, e prometeu dar-lhes tudo o que Lhe pedissem, dizendo: “Portanto vos digo que tudo o que pedirdes, orando, crede que o recebereis, e tê-lo-eis”.
Por que precisamos orar? Se pedirmos alguma coisa que devemos alcançar segundo os propósitos do Senhor a nosso respeito, já não está isso incluído em Sua Divina provisão? E, portanto, não nos seria concedido sem que o pedíssemos? Se, por outro lado, pedirmos alguma coisa que discorde dos propósitos do Senhor, não é absurdo imaginar que Ele se afaste desses propósitos para satisfazer o nosso pedido imprudente? Como, então, prometeu Ele dar-nos tudo o que pedirmos?
Esta aparente dificuldade provém de que estamos habituados a pensar a respeito da prece como sendo apenas uma forma de nos dirigirmos a Deus para pedir o Divino auxílio ou a Divina Bênção. A verdade, entretanto, é que a prece, que é ouvida no céu, não é uma fórmula de palavras, mas uma afeição do coração. Podemos muitas vezes recitar súplicas ao Senhor simplesmente pelo hábito adquirido desde a infância e sem que o nosso coração tome parte nessa prece.
Oramos, de fato, por aquilo que mais profundamente amamos e desejamos. Por trás de muitas emoções que, em tumulto, chegam à nossa percepção consciente, há em cada mente humana um amor dominante. A sua existência, porém, em grande parte, nos passa despercebida. Só em momentâneos relances de revelação do próprio eu, é que podemos vislumbrar o que ele é realmente. Fora disso, ele só chega à nossa percepção envolto nas roupagens das afeições externas que disfarçam a sua natureza real. Contudo, essas afeições são secretamente qualificadas por ele, que as emprega para alcançar os seus propósitos. Esse amor dominante dispõe, de maneira sutil, a nossa vontade, o nosso pensamento, as nossas ações, e dirige todas as coisas da nossa vida para a execução de seus fins ocultos. Molda o nosso caráter íntimo e faz que sejamos o que realmente somos. O seu objetivo é aquilo porque anelamos e lutamos continuamente. É uma prece viva e perene. A despeito das palavras que pronunciamos em nossas preces ao Senhor, é esta prece que é ouvida no céu.
Esta prece é sempre atendida. O Senhor lhe dá atenção, e continuamente adapta a ela o influxo e a operação de Sua Providência. Faz isso com Infinita Misericórdia, tendo em vista a nossa bem-aventurança eterna. Sua Misericórdia estende-se a todos, plenamente, qualquer que seja a natureza do amor pelo qual venham a orar.
Se o nosso amor dominante for mau, Ele não pode atender à nossa prece sem prejudicar os outros. Pois em todo mal há sempre ódio, vingança e crueldade. Entretanto, Ele não pode destruir subitamente este amor sem destruir a nossa própria vida. Em resposta a tal prece, portanto, o Senhor trabalha com suave paciência para retirar-nos de nosso amor mau, permitindo-nos alcançar os nossos fins somente na medida necessária à proteção de nossa liberdade. Fora disso, nos contém pelo medo e pela punição, procurando continuamente por esse modo restabelecer a nossa força e nos dar a oportunidade de rejeitar o mal e escolher o bem — basta, para isso, que o queiramos.
Se, por outro lado, o nosso amor dominante for bom, então tudo aquilo que pedirmos na prece pode e será, oportunamente, concedido. Isso não será feito imediatamente; nem da maneira que erroneamente imaginamos, mas segundo os métodos próprios do Senhor e no tempo por Ele determinado. Pois em resposta a tal prece, o Senhor trabalha para exaltar o nosso amor, para purificá-lo, para separá-lo das falsas idéias e das más afeições que em nossa mente se misturam com ele. Para efetuar essa purificação, a nossa atenção é atraída para esses males, para que os reconheçamos e os rejeitemos. É com este intuito que são permitidas as tentações, com as lutas e sofrimentos que acarretam. Mas na medida em que os males e falsidades são assim removidos, não somente a prece de nosso coração é atendida, como, além disso, bênçãos indizíveis são acrescentadas àquilo que pedimos; bênçãos  com que nem sonhávamos.
Cada um de nós nasce com tendências para amores para amores maus. Mas a cada um de nós — na inocência da infância e da meninice — o Senhor empresta amores celestes. Em estados que se alternam nós percebemos as qualidades de ambos, e nos é concedida a liberdade de escolher qual deles se tornará o nosso amor dominante. Aquele que livremente escolhermos se tornará a prece de nossa vida — prece de acordo com a qual somente o Senhor nos pode beneficiar. Esta é a razão porque o Senhor disse a seus discípulos: “E quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém, para que vosso Pai que está nos céus, vos perdoe as vossas ofensas”.
Literalmente compreendido, isto significa que quando estamos em estado de culto, se quisermos que a nossa prece seja ouvida, devemos conscienciosamente cultivar um espírito de caridade para com o próximo, afastando todo sentimento de má vontade ou de inimizade para com os outros. Isto está de acordo com o ensinamento de que a nossa prece real não é constituída pelas palavras que falamos, mas pela afeição que insira essas palavras — exatamente como foi expresso pelo salmista quando escreveu: “Se eu atender às iniqüidade em meu coração, o Senhor não me ouvirá” (Salmo 66,18).
Ter caridade para com o próximo é receber o amor do Senhor e fazer com que a nossa vontade fique de acordo com os Seus Divinos fins. Pois o amor do Senhor é Infinita Misericórdia para com toda a raça humana; e quando esse amor é recebido pelo homem, ele se transforma em caridade que inspira o espírito do perdão. Quando a nossa vontade está de acordo com o Divino Amor, então a nossa prece não provém do eu, nem é feita por causa do eu, mas vem do Senhor — do desejo de servir ao Senhor. Provém do desejo de fazer a Sua vontade que é dar as bênçãos celestes a todos os homens. Assim, é feita por causa dos outros. Torna-se uma prece para que não prejudiquemos os outros e, por conseguinte, para que seja afastado de nós tudo quanto em nós possa prejudicar os outros. É, pois, uma prece para que o Senhor nos liberte dos males de nossa própria natureza. “E quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém, para que vosso Pai que está nos céus, vos perdoe as vossas ofensas”.
Este é o espírito que deve prevalecer em todo culto externo genuíno. Mas o culto externo não é bastante. Para que possamos saber o que mais é necessário precisamos penetrar mais profundamente na significação do texto e descobrir o seu alcance mais lato. Um estado de caridade, uma atitude de perdão no culto externo — mesmo que seja inteiramente sincera — pode não representar o amor dominante de nossa vida. Pode ser uma afeição emprestada, induzida por uma esfera de santidade — uma esfera que por momentos nos eleva acima de nós mesmos, levando-nos à presença dos anjos e dos espíritos angélicos, o que nos permite sentir seus prazeres e afeições como se fossem propriamente nossos. Se for esse o caso, então quando o estado de culto passar e os nossos próprios amores se tornarem outra vez ativos, o espírito de caridade pode desaparecer completamente. Estes amores próprios alinharão então, mil razões para que não perdoemos; para que achemos necessário agir com inimizade e má vontade para com aqueles que nos prejudicaram ou injuriaram. Enquanto o espírito de caridade não estiver estabelecido como amor dominante, governando o nosso pensamento e a nossa vontade em todas as ocasiões e em todas as ocupações da vida, a nossa prece não será das que podem ser aceitas pelo Senhor.
Por esta razão, as palavras “quando estiverdes orando”, no seu sentido mais lato, não significa, apenas “quando estamos em um estado de culto externo”. Significa, antes, “quando nosso amor está ativo no exercício de nosso uso ou ofício, no desempenho de nossos deveres, quer nos negócios, quer na família, quer na vida social”. Pois o amor que intimamente nos governa e atua em nós nessas ocasiões, é a prece de nossa vida.
É quando aquele amor está atuando em nós, no desempenho de nossas ocupações diárias, que aquela prece sobe e é ouvida no céu. É então que devemos desejar e nos esforçar por exercer a caridade para com o próximo. É então que devemos lutar para afastar de nossas intenções conscientes e de nossa vontade, tudo o que prejudique o próximo. Tal prece é a essência viva de uma religião espiritual. Onde essa prece é oferecida, dia a dia, o Senhor pode influir para remover os males e falsidades, a fim de que sejamos reformados e regenerados. Então nosso “Pai que está nos céus, pode perdoar as nossas ofensas”.
O uso e o propósito do culto externo é também afastar-nos de nossas próprias afeições, por meio de uma esfera de santidade, a fim de que possamos sentir os prazeres da caridade e sejamos inspirados a nos inclinar para eles, mesmo depois de passado o estado de culto. O culto externo é um poderoso auxílio, organizado para nos fortalecer em nossa determinação de fazer com que a caridade se torne o espírito interno dominante em nossa vida. Ele contribui para a nossa regeneração, porém somente no grau em que serve a esse propósito; somente no grau em que perseveramos em nossos esforços.
Devemos, porém, ter bem presente que não podemos ser bem sucedidos nesses esforços por nós mesmos. Só o Senhor pode perdoar realmente. É o Seu amor em nós — o Seu amor livre, voluntária e alegremente recebido por nós — que, de fato, perdoa. O perdão não é um mero sentimento de tolerância, de bondade, de boa vontade para com os outros. É o afastamento real de tudo que em nós pode trazer mal aos outros. É especialmente o afastamento do mal do homem interno — da intenção íntima e dos fins que pertencem ao amor dominante.
Como já foi dito anteriormente, este amor dominante está profundamente escondido. Somos quase que completamente inconscientes de sua qualidade ou mesmo de sua presença. Vivemos imersos numa corrente de emoções superficiais por meio das quais nos tornamos conhecidos dos outros; e que em grande parte tomamos pelo nosso eu real. Podemos, com efeito, nos esforçar por ajustar estas emoções superficiais às necessidades do convívio social. Podemos moldá-las para se conformarem com as exigências da sociedade e das tradições e costumes. E tudo isso pode-se fazer levado por um amor dominante mau — um amor concentrado no eu, que trabalha e ora pela satisfação de sua própria vontade. Não podemos, porém, mudar o nosso amor dominante. E isso porque, mesmo que penetrássemos através dos seus disfarces e chegássemos a conhecer a sua verdadeira natureza, não poderíamos ir além dele para alcançar alguma coisa que nos habilitasse a mudá-lo. Tentar isso seria o mesmo que tentar nos levantar do chão, puxando os cordões de nossos próprios sapatos. É esta a razão porque o homem não pode se regenerar a si mesmo. É esta a razão porque necessitamos do auxílio do Senhor. É por esta razão que devemos rogar esse auxílio e entregar a nossa mente e o nosso coração à direção do Senhor, se quisermos nos libertar dos males de nosso homem interno.
É no interior da mente natural que residem os nossos desejos, as nossas intenções e os nossos motivos conscientes; é aí que temos a liberdade de escolher entre o bem e o mal. Mas o bem que está aí para ser escolhido, é o bem do Senhor. É um bem que vem do Senhor e não do eu. Esse bem nos vem pelo céu, nas relíquias da infância, que são relembradas nos estados de santidade. Vem especialmente da Palavra que, quando é lida com respeito e humildade, nos leva à presença do Senhor e do céu. A qualidade do amor do Senhor nos é revelada pelas verdades da Palavra. Estas verdades contêm no seu interior a Divina Vontade — a Divina Lei pela qual os males podem ser afastados do homem interno.
Se, inspirados pelos prazeres que se tornam sensíveis para nós no culto externo, procurarmos e desejarmos ardentemente este bem que vem do Senhor, sentiremos também sede pelas verdades da Palavra. Desejaremos conhecer e compreender essas verdades. Oraremos de coração para sermos guiados por essas verdades e, por conseguinte, para sermos conduzidos pelo Senhor. Quando, por este modo e por nossa própria escolha, afastamos os males de nosso homem externo, o Senhor, operando secretamente, pelo interior e fora de nossa consciência pode, por graus sucessivos, afastar o mal de nosso homem interno; levando, por fim, o nosso amor dominante à ordem do céu.
Assim é que, conquanto devamos fazer a escolha por um esforço consciente, de acordo mesmo com as palavras do Senhor — “Quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém” —, entretanto a reforma, a regeneração e a salvação pertencem ao Senhor somente. Só Ele pode perdoar. Só Ele pode afastar os males do homem interno. Mas Ele só pode fazer isso no grau em que, livremente, nos submetemos à direção de Sua Verdade.
Se aceitarmos as verdades da Palavra com fé, e na vida, essas verdades nos conduzirão ao cumprimento da Vontade do Senhor. Então a nossa prece — a prece de nossa vida — não sairá do eu. Terá sua origem na Palavra e, portanto, no Senhor. Será uma prece para que Ele mude a nossa vontade interna — o nosso amor dominante — e nos leve a nos harmonizar com Seus propósitos eternos.
A essência de tal prece é: “Não se faça a minha vontade, ó Senhor, mas a Tua, seja feita”. Em resposta a esta prece — se ela não for apenas dos lábios, mas verdadeiramente da vida —, “Nosso Pai que está nos céus nos perdoará as nossas ofensas”.
Amém.

•   1ª Lição:     Salmo 66
•   2ª Lição:     Marcos 11, 15-26
•   3ª Lição:     A. E. 325, 3-4