A PORTA DO INIMIGO


Sermão pelo Bispo George de Charms


“A tua semente possuirá a porta dos seus inimigos”.

(Gênesis 22, 17)

Pelo fato de Abraão ter demonstrado sua completa devoção ao Senhor, prontificando-se a matar Isaac, seu único filho, para cumprir a ordem Divina, o Senhor o abençoou, dizendo: “Multiplicarei grandemente a tua semente como as estrelas do céu, e como a areia que está na praia do mar; e a tua semente possuirá a porta dos seus inimigos” (Gênesis 22, 17-18).
Historicamente, isto era uma promessa de que os descendentes de Abraão se tornariam uma forte nação que expulsaria os habitantes idólatras de Canaã, e estabeleceriam aí um reino fundado na Lei Divina. Compreendido, porém, mais profundamente, é uma promessa de que todos que seguirem o Senhor, guardando os preceitos de sua natureza hereditária, para que o Reino de Deus possa se estabelecer dentro deles. Neste sentido, “a porta do inimigo” é aquilo por onde os amores maus entram na mente do homem para exercer influência dominante sobre sua vida. “Possuir esta porta” é barrar o caminho e recusar entrada a essas forças malévolas para que a mente se torne a habitação pacífica do amor celeste e da caridade.
É uma crença comum em nossos dias, que a única porta de entrada para a mente são os sentidos do corpo. Pensa-se que todo homem é dotado hereditariamente de certas qualidades específicas de disposição e de temperamento que caracterizam a sua individualidade. Algumas dessas qualidades são qualificadas como “boas”, isto é, desejáveis; enquanto que outras são consideradas como “más” ou anti-sociais. Tomadas, porém, em conjunto pensa-se que elas constituem o feitio próprio de que o homem não pode fugir. Desde que se supõe que nada pode mudar essa natureza inata, exceto o que entra através dos sentidos, vindo do mundo circundante, acredita-se, pelo próprio fato, que o desenvolvimento da vida de um homem é o mero resultado do entrechoque entre os seus impulsos inatos, de um lado, e as influências do meio, de outro lado.
As influências combinadas da instrução, da educação, da opinião pública, da lei civil e da experiência pessoal na adaptação às leis imutáveis da natureza, não podem mudar o feitio do homem; mas podem modificar bastante suas manifestações externas. Inteligentemente dirigidas, essas influências podem ser usadas para cultivar a manifestação dos melhores impulsos do homem e coibir as que são indesejáveis. Por isso se diz que o objetivo da educação deve ser realizar um ajustamento satisfatório do indivíduo às exigências da sociedade em que vive. A sua qualidade é medida então pelo grau em que este objetivo é alcançado.
Tudo isso seria verdade se os sentidos físicos fossem as únicas portas de entrada para a mente do homem, e se a sua natureza herdada fosse, de fato, o homem mesmo. Então, sim, o seu caráter hereditário seria realmente inalterável. Contudo as influências combinadas do meio são tão poderosas que, se forem inteligentemente dirigidas, dificilmente falharão na moldagem da forma externa da mente de acordo com qualquer modelo escolhido. Idéias podem ser implantadas; reações emotivas podem ser cultivadas; modos de falar e de agir podem ser inculcados; e tudo isso pode se tornar tão habitual, tão espontâneo, que chegará a constituir o que se chama “uma segunda natureza”.
Muito poucas são, com efeito, as pessoas que mediante uma análise acurada de suas disposições inatas e uma hábil aplicação das facilidades educacionais não possam ser, com êxito, ajustadas à vida social. Isto é tão real, que somos inclinados a esquecer que esta “segunda natureza” nos foi, de fato, imposta de fora. Em geral a confundimos com o nosso eu real. A manifestação de nossos impulsos mais profundos é tão perfeitamente impedida que nos tornamos inconscientes de sua existência.
A verdade, porém, é que a “natureza” com que nascemos não é, dessa forma, mudada profundamente. Sua superfície externa — a superfície que aparece diante do mundo, a superfície da qual, em geral, temos consciência — é apenas recalcada segundo os modelos em voga. Tão acostumados ficamos com essas influências, que não as sentimos mais, imaginando que adotamos esse modelo por nossa livre vontade. Só em breves instantes de discernimento e em virtude de cuidadosa auto-análise é que podemos compreender que, quando as influências externas são afastadas, poderosos impulsos para o mal se manifestam, esforçando-se ativamente para exteriorizar-se. Em tudo o que interessa a nossa natureza inata, o nosso caráter não sofre a mínima mudança pelos meios de compreensão externa.
Pondo de lado a religião, isto é, os ensinamentos da Revelação Divina, a educação, de fato, tudo quanto pode fazer é formar essa “segunda natureza” que em nada modifica o caráter real da pessoa. O objetivo da religião não é impor à mente apenas uma forma superficial de conduta, segundo o padrão moral estabelecido, mas produzir uma mudança radical na natureza inata do homem, removendo, de dentro, os impulsos para o mal e substituindo-os por afeições e desejos bons. E isso é possível porque o homem é um habitante dos dois mundos — o mundo visível da natureza e o mundo invisível do espírito. É possível porque, para a entrada da mente, há além das portas do mundo exterior através dos sentidos, outras do mundo espiritual.
De um modo geral, pode-se dizer que há duas portas desta natureza espiritual, isto é, desta última espécie. Uma dá entrada às afeições más, aos prazeres do amor de si, da avareza, do orgulho e da superioridade sobre os outros, induzidos por maus espíritos — pelos maus espíritos com quem todo homem está inconscientemente associado. A outra dá entrada às afeições celestes, inspirando amor ao Senhor e caridade para com o próximo, e o prazer do uso, isto é, o prazer de ser útil. Estas afeições são induzidas por bons espíritos e anjos com quem o homem também está, sem o saber, consociado. É a nossa natureza hereditária que abre a porta às más influências. E é a inocência da infância e da meninice, que abre a porta através da qual os anjos agem do interior.
A origem destes impulsos, tanto para o bem como para o mal, permanece desconhecida, porque o homem não tem consciência de suas associações espirituais — parecendo-lhe que vive inteiramente no mundo natural. Esses impulsos lhe parecem inerentes à sua constituição inata; tem assim a impressão de que possui uma dupla natureza. Mas a verdade é que nenhuma delas é o homem mesmo. Ambas influem do meio espiritual que o cerca, e cada uma delas exerce sobre ele uma pressão diretamente oposta à exercida pela outra. Entre estas duas forças, o Senhor, por Sua Providência, mantém um perfeito equilíbrio. O homem nada mais é que um misterioso poder, constantemente sustentado pelo Senhor, mas percebido como pertencendo inteiramente ao homem — um poder de escolher qual destas forças ele cultivará, estimará, e qual aquela a que resistirá. A hereditariedade através da qual entras as más influências, é o que a Palavra chama a “porta do inimigo”, enquanto que os restos de afeições inocentes que dão entrada às influências angélicas são chamados “a porta do céu”.
Em cada homem há uma mente interna — um plano de pensamento e de sentimento que pertence a ele somente. O que se passa aí não pode ser conhecido pelos que o cercam, exceto na medida em que ele, voluntariamente ou involuntariamente, revela, falando ou agindo. Nesse plano mais elevado, as pressões ou influências do mundo não podem penetrar. Para aí, de tempos em tempos, o homem se retira, refletindo sobre os problemas que dificultam a sua vida, apaziguando os impulsos em conflito que o estimulam a pensar e agir, formulando os seus objetivos internos — os secretos motivos por que se decide a lutar. Só pode fazer isso quando está inteiramente isolado ou, então, quando, por um esforço de vontade, consegue subtrair sua atenção dos que o cercam, focalizando-a sobre os assuntos de seus próprios pensamentos internos.
Enquanto um homem está na presença de outros, encarando os problemas e responsabilidades de suas relações com eles, fica sujeito aos laços da sociedade. No pensamento e na vontade, tanto quanto na palavra e na ação, tem que levar em conta as restrições impostas pelas leis civis e morais, pelos costumes, pelas tradições e pela pressão da opinião pública. A conformação com essas coisas é produzida por considerações de interesse próprio. Sem isso não se poderia assegurar a cooperação dos que convivem com ele para consecução de seus desejos pessoais. Dentro de si mesmo, porém, está livre de querer e pensar como lhe agrada. Pode examinar o que sente e o que pensa. Pode recordar os estados passados, comparando e confrontando as várias emoções que, de tempos em tempos, se levantam em sua mente. Pode olhar para elas como que de cima, julgando sua qualidade e selecionando as que deseja reter das que deseja rejeitar. De acordo com esta escolha, abre uma porta do influxo espiritual e fecha a outra.
Esta mente interna onde tem lugar o exame próprio, é chamada “a natureza interior” ou o íntimo do racional; aí começa o humano, como nos é ensinado pela Doutrina. Aí reside o homem mesmo. Pelas decisões tomadas em seu santuário interno, é gradualmente formado o caráter real do homem e determinada a sua qualidade interna. Pois aquilo que é recebido do mundo espiritual como um resultado da escolha individual, dá a qualidade distintiva a tudo o que o homem pensa e faz. Determina o espírito que impulsiona a sua vontade. E é de acordo com esse espírito que cada homem é julgado pelo Senhor. Por esta razão, não é o que nos vem de fora que nos faz bons ou maus. É o influxo, bom ou mau, que nós solicitamos, estimamos e apropriamos por nossa própria escolha.
Que isto é verdade em relação ao mal, o Senhor claramente nos ensina quando diz: “Tudo o que entra pela boca desce para o ventre e é evacuado. “Mas o que sai da boca, procede do coração, e isto contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, falsos testemunhos e blasfêmias. São estas coisas que contaminam o homem” (Mateus 15, 17-20). O reverso é igualmente verdadeiro, a saber, que nada do que vem de fora pode purificar o homem, mas somente as afeições celestes que procedem do coração isto é, de um amor livremente escolhido de preferência ao seu oposto, depois que os dois foram examinados e comparados.
O ponto a ser salientado aqui é que sem algum conhecimento e entendimento da Palavra, sem alguma verdade genuína da religião, o homem não pode escolher de preferência o influxo celeste quando assoberbado por seus impulsos para o mal.
Só a Divina Verdade da Palavra pode abrir para o homem a “porta do céu” nesse grau interior de sua mente. E isso porque em nenhuma outra fonte poderemos encontrar ensinamentos verdadeiros sobre Deus e sobre o mundo espiritual. Enquanto esses conhecimentos nos faltam não temos probabilidade de compreender que os nossos impulsos inatos não são propriamente nossos. Enquanto acreditamos nisso, permanecemos sob o domínio do mal. Pois ainda que possamos sentir afeições celestes e nos entreguemos a elas, não deixaremos de reivindicar para nós mesmos o mérito de todo o bem que fizermos, o que fará com que se fortaleça o orgulho de nossa suposta superioridade, ficando todas as nossas ações ao serviço do amor próprio.
Sem esses conhecimentos da verdade não poderemos evitar a conclusão de que não somos responsáveis por nossas más tendências, desde que são encaradas como parte de nossa própria natureza. Isso fará com que as desculpemos, julgando-as inevitáveis. Dessa forma, apenas procuraremos purificá-las o suficiente para evitar as punições que toda transgressão clara das leis morais e civis deve acarretar. Contra isso o Senhor nos adverte quando diz: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo algum entrareis no reino dos céus”.
É somente quando estamos afastados das influências que nos cercam no mundo, no secreto retiro da mente onde a nossa escolha é livre, onde escutamos os ensinamentos da Palavra, reconhecendo sua verdade de coração e com fé, e aceitamos a sua direção, que o Senhor pode inspirar-nos para fazermos a Sua Vontade, e para dar-nos forças para resistir às más influências de nosso hereditário. Se, obedecendo aos mandamentos do Senhor, renunciamos à nossa própria vontade e à nossa própria inteligência, com plena liberdade interna e por um amor que nós mesmos escolhemos, então o Senhor pode abrir-nos esta porta do céu, e escrever a Sua Lei sobre nossos corações. Esta escolha é representada pela disposição de Abraão para sacrificar Isaac, seu único filho. É isto que traz consigo a bênção do Senhor, a promessa da vitória na tentação, a subjugação do mal, e que verdadeiramente nos habilita a “possuir a porta do inimigo”.
Nenhum homem pode fazer isso por outro. Isso constitui a responsabilidade individual de cada um. Mas nada mais pode, realmente, mudar a natureza inata do homem. Por nenhum outro meio pode ele adquiri o verdadeiro caráter celeste. E porque isso é assim, o objetivo supremo da educação deve ser, não simplesmente ajustar o indivíduo à sociedade, por meio de compressões externas, mas antes conduzi-lo ao Senhor, enriquecer a sua mente com os conhecimentos da Palavra, insuflar-lhe a afeição da Divina Verdade, encorajar e fortalecer seus propósitos de obedecer a lei de Deus, para que o Senhor possa abrir para ele a “porta do céu”.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 22, 1-19
•   2ª Lição:     Mateus 15, 1-20
•   3ª Lição:     V. C. R. 592-593