A ONIPRESENÇA DA PROVIDÊNCIA


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a Tua mão me guiará e a Tua destra me sustentará”.

(Salmo 139, 9-10)

O governo do Senhor, que se chama a Divina Providência, abrange todas as coisas do Universo. Não é uma simples supervisão geral, mas vai até as particularidades e as singularidades; vai mesmo até as coisas mínimas. Sua ação é contínua, exercendo-se em todos os momentos e durante toda a eternidade. Segue-se daí que coisa alguma pode acontecer no mundo natural, tanto na sociedade humana, como nos reinos da natureza; assim como coisa alguma pode acontecer no mundo espiritual, tanto no céu como no inferno, cujos efeitos não sejam determinados e dirigidos pelo Senhor Mesmo, visando alcançar o fim supremo de Sua criação.
Esta é a verdade interna a respeito da Providência; e o grau em que podemos reconhecer esta verdade no coração e na fé, o grau em que podemos manter as nossas mentes na confiança e segurança que esse reconhecimento engendra, esse grau é a medida do poder que a nossa religião exerce sobre a nossa vida.
Não é difícil reconhecer esta verdade como uma fórmula doutrinal. A mente racional vê imediatamente que se Deus é onipotente e onisciente, o Seu governo deve ser universal, resultando daí, como uma generalidade ilimitada, que a Divina Providência deve controlar tudo o que acontece. Todos os homens que acreditam em Deus reconhecem isso, seja qual for a sua religião. Mas uma fé viva nesta Providência, em sua ação dispondo as circunstâncias de nossa vida; uma confiança real em sua proteção, capaz de remover da mente tanto os atormentadores remorsos do passado como as ansiedades do futuro, isso é muito mais difícil de alcançar, pois parece evidentemente contrário a toda a nossa experiência.
Não somos continuamente chamados a escolher o que faremos diante das numerosas possibilidades postas diante de nós? Não é livre esta escolha? Não depende do nosso próprio julgamento? Não determina essa escolha a direção de nossa vida, trazendo uma cadeia de inevitáveis conseqüências em sua esteira? Ora, assim sendo, parece que atribuir essas conseqüências à Providência, é negar a responsabilidade de nossa própria escolha. Se fizermos uma má escolha, a culpa será então do Senhor e servirá de protesto para escaparmos ao justo reconhecimento de nossa falta. Se pela escolha do mal agimos contra a Lei Divina, como a Providência opera sempre de acordo com essa Lei, segue-se que por nossa livre escolha nos colocamos fora da corrente da Providência e fora de sua esfera protetora; e por esse fato estaríamos querendo assumir uma responsabilidade que, devido à indiscriminada atribuição de todas as coisas à Providência, está inteiramente afastada. Não devemos, portanto, atribuir ao Senhor, somente, o que é bom e deixar de ver a mão da Providência nos resultados de nossa própria ignorância e de nossa própria vontade?
Parece, com efeito, ao homem que o Senhor está presente no bem e ausente no mal, que a Sua misericórdia está com os que O temem, enquanto que a Sua ira se levanta contra os maus; que Seu amor derrama bênçãos sobre todos os que guardam os Seus mandamentos, mas Sua justiça leva a maldição sobre os que se opõem à Sua vontade. Esta aparência é confirmada em muitos lugares da Palavra, como na admoestação feita pelo Senhor, por intermédio de Moisés, aos filhos de Israel:
“Eis que hoje Eu ponho diante de vós a bênção e a maldição: a bênção quando ouvirdes os mandamentos do Senhor vosso Deus, que hoje vos mando; porém a maldição se não ouvirdes os mandamentos do Senhor vosso Deus, e vos desviardes do caminho que hoje vos ordeno para seguirdes outros deuses que não conhecestes”. (Deuter. 11, 26-28)
Por estas palavras parece claro que a proteção da Providência está limitada aos bons; que ela não se estende aos maus, os quais são afastados para além do alcance da misericórdia do Senhor.
É assim que parece ao homem, mas a verdade é diametralmente oposta. As aparências disso, tão freqüentemente encontradas na letra das Escrituras, são removidas pelos Escritos, deixando aparecer a verdade interna, a saber, que o homem não pode por meio algum separar-se da ação da Divina Providência. Não pode levar sua vida fora do alcance da misericordiosa proteção do Senhor. Mesmo quando o seu procedimento é mau, quando escolhe o mal e rejeita o bem, a Providência do Senhor continua a governar e controlar a sua vida, a entrar nela e a dirigi-la em suas mínimas particularidades, e isto a despeito do fato de que a responsabilidade do mal e as suas conseqüências — com os sofrimentos que delas decorrem — permanecem inteiramente com o homem e não com o Senhor, nem mesmo na menor parte. Esta verdade interna aparece ocasionalmente, mesmo na letra da Palavra, e se encontra abertamente expressa no Salmo 139 que, do princípio ao fim, trata da Divina Providência. Aí o salmista diz: “Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a Tua mão me guiará e a Tua destra me sustentará”.
A palavra “manhã” é ordinariamente empregada nas Escrituras para representar um estado de iluminação espiritual, quando o Senhor aparece, quando o Sol do céu se levanta sobre a mente, despertando nela as afeições do amor ao Senhor e da caridade para com o próximo. Então o pensamento do homem se eleva acima das coisas da terra; se eleva como se tivesse asas, às esferas do céu, sendo-lhe dado perceber, em uma luz clara, o que é Divino e eterno. Mas aqui esse termo é empregado no sentido oposto para descrever um estado em que os amores de si e do mundo são excitados conjuntamente com suas cobiças.
Quando isso acontece, o homem entra na imaginação de seu próprio coração. Entra na luz ilusória da própria inteligência. Parece a si mesmo que está iluminado, que está se elevando, como se tivesse asas de água, para supervisionar as circunstâncias de sua vida de uma grande altura. Parece-lhe possuir o poder de controlar essas circunstâncias e dirigi-las à vontade; parece-lhe que é, com efeito, senhor de seu próprio destino. Desconhece que este estado de “manhã” é puramente imaginário; que fora da luz do Senhor está totalmente em trevas, não podendo, por isso, perceber nem a mínima verdade espiritual, porque “habita nas extremidades do mar”, isto é, imergiu sua mente nas falsidades e aparências derivadas dos sentidos, tomando-as como realidades.
Estando em trevas, não pode pensar senão falsidades; o seu amor próprio não pode querer senão o mal; e, conseqüentemente, não pode agir senão em oposição ao Senhor e contra a corrente da Providência. Entretanto, mesmo neste estado de mal, o Senhor não o abandona. Seu Amor e Sua misericórdia cercam-no e protegem-no ainda. A Providência continua a velar sobre ele com cuidado incessante e com infinita ternura. Pois está escrito: “Até ali a Tua mão me guiará e a Tua destra me sustentará”.
Os Escritos nos dão a entender como isso acontece. A Divina Providência, dizem eles, é a ação do amor do Senhor, segundo Sua Sabedoria, visando a formação de um céu com a raça humana. Esta ação é constante e imutável. Os seus efeitos variam, porém, de acordo com a recepção. E como há graus de recepção, há na aparência, graus da Divina Providência. Estes graus chamam-se: Divina Vontade, Complacência, Tolerância e Permissão.
A Providência no céu celeste está de acordo com a Divina Vontade, porque nesse céu os anjos estão no supremo amor ao Senhor e no desejo de servi-l’O no desempenho de usos ou funções. Assim, entregam-se completamente à direção do Senhor que pode, desse modo, imbuí-los de toda sabedoria celeste e derramar sobre eles as mais elevadas bênçãos de felicidade e de alegria. No céu espiritual, porém, a Providência se diz estar de acordo com a Complacência do Senhor, porque aí os anjos estão mais na caridade para com o próximo do que no amor ao Senhor. Estão mais no prazer de ver e compreender a verdade do que no amor dos usos. Por esta razão o Senhor pode dotá-los, apenas, com a inteligência, em vez da sabedoria; tendo eles assim uma felicidade menos perfeita. Esta restrição não está, entretanto, no Senhor, mas nos anjos que preferem permanecer no amor da verdade, não tendo tirado proveito da oportunidade que lhes foi oferecida pelo Senhor, para avançar até ao amor dos usos.
A Providência no céu natural é chamada Tolerância porque os anjos desse céu se satisfazem em permanecer na obediência, contentando-se em preencher usos de acordo com as instruções de anjos mais sábios, em vez de se empenharem para alcançar o entendimento da verdade por si mesmos, ou assumir a responsabilidade que inevitavelmente acompanha a iniciação dos usos. Para estes anjos o amor do Senhor é o mesmo que para os dos céus superiores; não lhes pode, porém, dar o mesmo grau de bem-aventurança porque eles não desenvolveram as faculdades mais elevadas por meio das quais, somente, essas bênçãos podem ser recebidas.
Por outro lado, a Divina Providência nos infernos é chamada “Permissão”, porque os maus espíritos colocam-se em oposição à Vontade do Senhor. Amam o mal em vez do bem, e a falsidade em vez da verdade. Acham prazer, não nos usos para o próximo, mas na dominação sobre os outros, para compeli-los a servir os seus fins puramente egoísticos. Para alcançar os próprios objetivos, não se importam de trazer a infelicidade, o sofrimento e mesmo a destruição dos outros. Se pudessem fazer a sua vontade, os fins da Divina Providência seriam frustrados. É então indispensável, para proteger os bons, que eles sejam contidos. Contudo, o amor do Senhor estende-se a eles da mesma forma que aos anjos. Procura dar-lhes todos os prazeres da vida que podem receber. Permite-lhes exercer seus próprios amores até onde ainda é possível tirar algum proveito para os outros, em vez do prejuízo que daí inevitavelmente resultaria, sem essa ação da Providência.
A permissão é, portanto, uma operação da Divina Providência sobre os maus. Por isso os Escritos dizem que “as leis de permissão são derivadas das leis da Providência” (A. E. 1159, fim), e que “em parte” as permissões “provêm das leis da ordem quanto ao bem” (A. C. 1447). Os males são permitidos como punição que, pelo temor, contêm o homem, evitando que mergulhe em males mais profundos e mais terríveis. Estes, sendo puramente negativos, não se pode dizer que provenham “das leis da ordem quanto ao bem”, mas que servem para proteção dos bons contra a agressão dos maus. Os males também são permitidos para o arrependimento e a reforma da vida de todos os que desejam se emendar. E isto é também ação da Providência. Com efeito, a Doutrina nos ensina que, hoje, devido à decadência do homem, não poderia haver reforma nem regeneração, sem os males da tentação e que, portanto, sem esses males, não poderia haver redenção nem salvação.
A diferença entre Permissão e Providência, não é uma diferença que existe nos efeitos dessa operação, produzida pela reação do homem ao amor do Senhor. Por esta reação é o próprio homem o responsável. O Senhor não é, em sentido algum, o autor do mal. Aparentemente o mal se originou da ignorância do homem, mas esta aparência é contrária à verdade. Pois o mal da ignorância não é mal aos olhos do Senhor. É mal na forma externa, mas bem na sua qualidade interna. Pois se o homem internamente ama a verdade e procura o bem, embora por ignorância pense que é falso e faça o mal, o Senhor levará em consideração, não o seu pensamento e os seus atos, mas seu amor e sua intenção. Estes constituem a alma que dá qualidade ao pensamento e à ação externa.
O mal, no sentido estrito, tem origem quando o homem, voluntariamente o escolhe, rejeitando ao mesmo tempo o bem. Por esta escolha o Senhor não é responsável, a não ser pelo fato de dar liberdade ao homem para escolher o mal e preservar essa liberdade. Isso faz parte da Ordem Divina. E é indispensável, porque sem isso não poderia haver céu. Pois o céu, com todas as suas bem-aventuranças, não consiste no bem obrigatoriamente recebido, mas no bem livremente escolhido. E o homem só é livre para escolher quando tem a liberdade de aceitar ou rejeitar o bem.
Conseqüentemente, a permissão do mal, interiormente compreendida, também faz parte da Providência. Embora, entretanto, a permissão torne possível para o homem escolher o mal, ela nunca faz que seja necessário que ele a escolha. Essa escolha é livre; e quando feita, só o homem, e nunca o Senhor, é responsável por ela.
Contudo, mesmo depois disso, a operação da Providência não cessa no homem. Ela continua, a despeito de sua escolha, a governar e controlar todas as coisas de sua vida. Age no sentido de poupá-lo de um mal maior e, tanto quanto possível, sem destruir sua liberdade, para atraí-lo do mal para o bem. Em ambos os casos, a sua ação visa utilizar os males intencionais do homem, na emenda e reforma dos outros. Quando não podem ser utilizados dessa forma, quando são verdadeiramente prejudiciais e destrutivos da vida espiritual, então são contidos pelo medo e pelas punições e, assim, impedidos de se ultimar em atos.
Em tudo isso, o Senhor, com Sua Providência, está presente tanto nos maus como nos bons, governando e controlando todas as coisas, com infinito amor e misericórdia. É isto que significam as palavras do texto: “Se eu tomar as asas da alva, e habitar nas extremidades do mar, até ali a Tua mão me guiará e a Tua destra me sustentará”.
A compreensão desse fato é da mais alta importância; sem isso, quando cairmos no mal, não poderemos nos elevar acima da aparência de que o Senhor, com efeito, nos abandonou. Somente quando reconhecemos que a Divina Providência está presente, tanto nos bons como nos maus, é que temos a possibilidade de ser reformados e regenerados. Pois estamos todos sob o domínio do mal, e é só porque o Senhor ainda pode estar presente em nós para governar a nossa vontade, para restaurar a nossa liberdade de escolha, para abrir a porta do arrependimento, que podemos “cessar de fazer o mal e aprender a fazer o bem”; e é só quando temos consciência desse poder que podemos nos libertar da constante sugestão dos maus espíritos de que estamos irremediavelmente perdidos e que, por isso, devemos nos entregar sem mais luta.
Somente esse reconhecimento nos pode dar esperança e força para recomeçar a batalha da regeneração, a despeito de repetidas derrotas. Somente isso pode dar-nos coragem para persistir na tarefa, aparentemente impossível, de estabelecer o Reino do Senhor sobre a terra, e no meio de um mundo cego para a verdade da Revelação, indiferente a toda instrução espiritual, completamente imerso nas ocupações materiais e nas ambições mundanas. E por esta razão, o reconhecimento da Providência do Senhor como sendo universal, mesmo no meio do mal, com Poder Divino para controlar e dirigir os destinos do homem, providenciando para que Sua Vontade e Sua Lei prevaleçam, e para que o fim supremo de Sua criação seja finalmente atingido, constitui o verdadeiro princípio essencial da Igreja.
Uma confiança genuína e sem reservas na Providência é a fonte de todas as bênçãos espirituais, em que reside o segredo da verdadeira felicidade humana. Pois só por esse meio nos pode ser dado conhecer, mesmo no meio da luta, alguma coisa da paz do céu — a paz que nasce de uma visão íntima do Senhor, presente em Seu Divino Humano com o poder de elevar e salvar —, a paz da alma que dá coragem e uma calma segurança — a paz que provêm de uma fé permanente em um Deus sempre amante e misericordioso.
Amém.

•   1ª Lição:     Deuteronômio 30
•   2ª Lição:     A. C. 2247, 1-3