A OBRA DA REGENERAÇÃO


Sermão pelo Rev. João de Mendonça Lima


“Em verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus”.

(João 3,3)

A obra de nossa regeneração é a tarefa que temos de executar durante a nossa vida no mundo para alcançarmos a bem-aventurança eterna no céu. É uma grandiosa tarefa que exige o emprego de esforços contínuos durante toda a nossa existência terrena. É uma obra para toda a vida. Quanto mais cedo a começarmos, mais probabilidades teremos de realizá-la e mais facilidades encontraremos na sua execução. E quanto mais tarde a iniciarmos, maiores serão as dificuldades que encontraremos e menores as probabilidades de concluí-la.
A época mais apropriada para começá-la é quando passamos da adolescência para a mocidade propriamente dita; mais ou menos entre os 18 e os 21 anos. No período anterior devemos nos preparar, pela aquisição dos conhecimentos da verdade, para enfrentar, com maiores probabilidades de sucesso, os obstáculos de toda ordem que iremos encontrar no caminho da regeneração. Infelizmente, os homens de hoje raramente fazem essa preparação e, por isso, são muito poucos os que começam a trabalhar na sua tarefa no momento mais oportuno, isto é, no início da mocidade.
Um grande número de pessoas chega ao fim de sua existência no mundo, sem sequer tê-la começado. Outras só a começam quando já passou a idade mais conveniente para isso. Em todo caso, antes tarde do que nunca, como diz o ditado popular. Nunca é demasiado tarde para começarmos a trabalhar na “vinha do Senhor”. Lembremo-nos de que o trabalhador da hora undécima recebeu salário igual aos assalariados da primeira hora. Não quer isso dizer que podemos atrasar propositalmente o início de nossa tarefa para alcançar, com menos trabalho, a mesma recompensa dos que começam cedo. Não; o trabalhador da hora undécima não ficou inativo de moto-próprio. Foram circunstâncias independentes de sua vontade que fizeram com que só fosse trabalhar na última hora.
Quando deliberadamente adiamos a execução do trabalho que sabemos nos competir, perdemos a oportunidade melhor de fazê-lo. Se, mais tarde, nos decidirmos a trabalhar, iremos encontrar dificuldades muito maiores que, talvez, nos levem a desanimar e a desistir, o que será a nossa perdição.
Aqueles, porém, que, sem culpa de sua parte só puderam começar a obra de regeneração depois de passada a época mais conveniente, se então se dedicarem a ela com ardor e sem desfalecimentos, alcançarão também o máximo de bem-aventurança eterna compatível com o seu estado, como o trabalhador da undécima hora recebeu o salário completo do dia, não obstante haver trabalhado apenas uma hora.
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Segundo as leis da ordem, o homem deve aprender na infância e na juventude as verdades da letra da Palavra, que formarão, em sua mente, a sólida base da construção espiritual que ele deve empreender na idade adulta.
Juntamente com essas verdades da letra da Palavra, a sua memória vai sendo provida com inúmeros conhecimentos naturais de toda espécie: científicos, literários, históricos, artísticos. Entre eles haverá muitas noções falsas, muitos erros, muitos preconceitos mundanos, muitas regras sem valor, muita coisa, enfim, nociva ao seu desenvolvimento espiritual.
Na mocidade, depois de atingir o pleno desenvolvimento de sua racionalidade — se ele quiser empreender com sucesso a obra da regeneração —, terá que começar por fazer, à luz das verdades da Palavra, um exame de tudo que aprendeu até então. Desse exame resultará o reconhecimento do que é verdadeiro e útil, e do que é falso e inútil. Feito esse reconhecimento, é preciso então rejeitar o que não presta e aplicar à sua vida o que é aproveitável. É dessa forma que começará o trabalho de sua reforma, que precede ao da regeneração propriamente dita, e sem o qual esta não se pode realizar.
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Estes ensinamentos estão contidos no sentido espiritual da parábola sobre a rede lançada ao mar que tomamos como segunda lição da Palavra para esta prédica. A rede representa a doutrina que constituímos com as verdades da letra da Palavra aprendidas na infância e na juventude. É à luz dessa doutrina que faremos o exame dos nossos conhecimentos, no limiar da obra da regeneração.
A memória para onde ocorrem todas as águas do saber que vamos adquirindo é representada pelo mar, para onde correm todas as águas da terra. As águas representam os conhecimentos naturais, isto é, as verdades da letra da Palavra e os ensinamentos sobre as coisas do mundo, tanto científicos como históricos, literários, artísticos, profissionais ou sobre preceitos da vida prática. Os peixes são os conhecimentos vivos que temos na memória; vivos porque os aplicamos à nossa vida, à orientação de nossa conduta, e servem de alimento para a nossa mente. Lançar a rede ao mar para pescar é procurar em nossa memória, à luz da doutrina que tiramos da letra da Palavra, os princípios vivos — os peixes — que aí se encontram. Depois de cheia, essa rede deve ser arrastada para a praia, onde os peixes serão selecionados, rejeitando-se os maus e recolhendo em cestos os bons.
O exame dos nossos princípios de vida, isto é, dos princípios que norteiam a nossa vida, não se faz propriamente na memória — representada pelo mar —, mas em nossa vontade — representada pela praia. A importância que esses princípios têm para nós depende da afeição que lhes votamos. As afeições (que brotam da vontade) é que determinam a influência que esses princípios — bons ou maus — terão sobre nós.
Assim, importa examiná-los não apenas por sua presença em nossa memória, mas pela sua presença em nossas afeiçoes. São os princípios que amamos que determinam a nossa conduta. Daí a necessidade de arrastar a rede cheia de peixes para a praia das nossas afeições, onde os deveremos examinar à luz da doutrina que formamos com os conhecimentos da letra da Palavra. No exame dos peixes que apanhamos vamos encontrar bons e maus. No exame dos princípios que amamos, que empregamos na direção de nossa conduta, vamos descobrir que alguns deles são realmente verdadeiros e úteis, mas há outros que são falsos e nocivos. Devemos então confirmar os primeiros e rejeitar os outros. Os peixes bons são recolhidos em cestos e os peixes maus são lançados fora. Os cestos são o nosso entendimento racional, que encheremos com esses princípios verdadeiros e úteis — os peixes bons —, para depois assá-los ao calor de nosso amor pela verdade, para servirem de alimento à nossa alma, que se nutrirá com eles, aplicando-os à reforma de nossa conduta.
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Até aqui temos falado da regeneração como se ela fosse uma obra puramente humana. Na realidade, porém, ela é eminentemente Divina. É o Senhor que faz, de fato, a nossa regeneração. É verdade, também, que Ele não pode executá-la sem a nossa cooperação, sem o nosso assentimento, sem que executemos a parte que nos compete.
A parte do homem na obra de sua regeneração é semelhante à parte que lhe cabe no processo da nutrição do seu corpo. Para alimentar-se o homem precisa procurar os alimentos, tomá-los na boca, mastigá-los e degluti-los. Daí por diante cessa a nossa interferência consciente. Os órgãos digestivos, obedecendo às leis de sua criação — às Leis do Senhor — recebendo o alimento deglutido, e estimulados por ele, se incumbem de digeri-lo e de prepará-lo para a assimilação, fazendo antes a separação e rejeição de tudo o que não é aproveitável e encaminhando o que deve ser aproveitado aos órgãos incumbidos da assimilação.
No processo da regeneração, semelhantemente, temos que escolher na Palavra do Senhor os princípios que nos agradam e, depois de raciocinar sobre eles para bem compreendê-los, nos esforçar para aplicá-los à nossa vida. A escolha dos princípios de vida, ou das verdades, se faz lendo ou ouvindo, isto é, ler a Palavra com atenção e sincero desejo de encontrar nela o alimento apropriado às nossas condições mentais. Nisso consiste a procura de nosso alimento. Depois temos que introduzi-lo na boca e mastigá-lo; isto é, temos que levar as verdades da Palavra ao entendimento e submetê-lo à meditação de nossa faculdade racional para ficarem em condições de serem deglutidas, isto é, levadas ao emprego em nossa conduta. A deglutição da verdade é o esforço que fazemos para aplicá-la à nossa vida. Daí por diante, tudo se passa sem mais interferência de nossa parte.
“Procurar a verdade, meditar sobre ela com o sincero desejo de aplicá-la em nossa vida, eis tudo o que nos cumpre fazer”. É muito pouco e muito simples comparado com o trabalho do Senhor; mas é muito se levarmos em consideração os obstáculos, as dificuldades, as oposições que encontraremos para fazer uma boa escolha dos nossos alimentos e o quanto custa prepará-los convenientemente.
O grande armazém onde podemos encontrar um sortimento completo e abundante de tudo que necessitamos para a nutrição de nossa alma é a Palavra do Senhor. Temos aí alimento variado para todos os paladares e para todas as necessidades do organismo espiritual. Infelizmente a maior parte dos homens não se abastece nesse armazém em que o Divino Amor põe à nossa disposição os tesouros da Divina Sabedoria. Preferem os alimentos falsificados e nocivos à saúde da alma, preparados pela maldade humana de que se originam todas as falsidades, todos os erros, que se encontram nos livros dos homens. Nesses falaciosos armazéns de idéias humanas, de doutrinas falsificadas e de adulterações dos ensinamentos da Palavra não podemos encontrar senão alimentos corrompidos que prejudicam a saúde de nosso espírito e acabarão por perverter o nosso paladar que, dessa forma, não sentirá mais sabor nos ensinamentos puros da Palavra e da Doutrina.
Não quer isso dizer que todos os livros humanos sejam maus. Ao contrário, há muitos que são excelentes e que podem contribuir eficazmente para a nutrição e saúde de nossa mente. Mas estes são bons justamente porque são calcados nas verdades da Palavra que lhes servem de argumento. São, por assim dizer, alimentos convenientemente preparados com os víveres obtidos no grande armazém da Palavra.
A escolha de nossos alimentos espirituais tem uma importância decisiva para a nossa sorte futura; e essa escolha é de nossa exclusiva responsabilidade. As idéias — verdadeiras ou falsas, boas ou más — apresentando-se à nossa mente sob as formas mais variadas, nos livros, nas revistas, nos jornais, nos teatros, nos cinemas, nas palestras com outras pessoas, constituem um imenso e variadíssimo acervo de alimentos espirituais postos constantemente diante de nós para que escolhamos o que nos convém. O alimento que vamos buscar na Palavra é, por assim dizer, um corretivo para os desastrosos efeitos desses outros alimentos que a toda hora estão nos oferecendo e que levianamente vamos ingerindo, como essas pessoas gulosas que passam grande parte do dia a comer guloseimas e a tomar aperitivos, sem pensar nas danosas conseqüências que essas coisas trazem para a sua saúde.
Se tivermos aprimorado o nosso paladar espiritual pelo uso freqüente dos sadios alimentos tirados da Palavra, teremos então um guia seguro para nos orientar no meio dos banquetes da vida cotidiana, em que as idéias falsas nos são oferecidas em grande abundância de mistura com algumas idéias verdadeiras. Saberemos então escolher o que é bom e útil, e rejeitar tudo que pode vir a prejudicar a saúde de nossa alma. Para chegarmos a esse ponto temos um grande trabalho a realizar. Os nossos maus sentimentos desejam ser alimentados pelas falsas idéias dos homens e se comprazem com esse alimento corrompido que o mundo obsequiosamente nos oferece com fartura nos seus livros, nos seus jornais, nos seus teatros, nos seus cinemas e em suas reuniões sociais.
Temos que lutar contra esse desejo de maus alimentos, assim como precisamos lutar contra a aversão que os nossos maus sentimentos nos fazem sentir pelo alimento espiritual que o Senhor nos oferece em Sua Palavra e na Doutrina Celeste da Nova Igreja. A princípio esse alimento nos parecerá insípido e pesado. Se persistirmos, porém, no estudo da verdade com o sincero desejo de aplicá-la à nossa conduta, o Senhor, fazendo a Sua parte na obra de nossa regeneração, irá pouco a pouco modificando o nosso paladar e melhorando os nossos órgãos digestivos. E assim vamos, aos poucos, achando mais sabor na verdade e a sua assimilação vai se tornando mais fácil e mais rápida.
As verdades que vamos adquirindo com amor, com o desejo de aplicá-las na reforma de nossa conduta, vão sendo incorporadas pelo Senhor ao nosso ser espiritual. É pela assimilação dessas verdades que irá sendo formada em nós uma nova vontade para substituir a vontade corrupta e má que herdamos de nossos antepassados. É esse o trabalho secreto do Senhor na obra de nossa regeneração. Quando fazemos a nossa parte procurando a verdade, a despeito da oposição dos nossos maus sentimentos oriundos de nossa má vontade hereditária, o Senhor faz a d’Ele, tornando pouco a pouco quiescentes e inoperantes esses sentimentos maus, e criando lentamente, com as verdades que vamos adquirindo e aplicando, uma nova vontade de onde vão emanando os sentimentos inocentes e puros que caracterizarão o novo homem espiritual que o Senhor, dessa forma, cria em nós.
É assim que nascemos de novo. É assim que somos novamente gerados. É isto a nossa regeneração. É isto que nos habilita a ser o reino de Deus onde, depois da morte, iremos residir para sempre. E por isso o Senhor nos diz em Sua Palavra: “Em verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”.
Amém.

•   1ª Lição:     Salmo 8o
•   2ª Lição:     Mateus 13, 44-46
•   3ª Lição:     Doutrina Celeste, 173-177