A NOSSA MORDOMIA


Sermão pelo Rev. João de Mendonça Lima


“Quem é fiel no mínimo, também é fiel no muito”.

(Lucas 16,10)

O Senhor confiou bens preciosos a cada um de nós, dando-nos o encargo de administrá-los; e um dia nos chamará para prestarmos conta de nossa administração. Assim, somos todos mordomos de propriedades do Senhor.
Os bens que nos foram confiados são de várias espécies. O mais importante é, sem dúvida, a vida que nos anima, sem a qual os demais bens seriam inúteis. Vem depois a vontade, o entendimento e a ação, receptáculos do Divino Amor, da Divina Sabedoria e do Divino Poder, pelos quais temos a faculdade de sentir, de pensar e de agir. Para vivermos neste mundo, o Senhor nos confiou ainda um outro bem maravilhoso, que é o nosso corpo físico com todas as suas faculdades. Temos, ainda, à nossa disposição, toda a variedade de bens materiais que nos são dados em maior ou menor escala, de acordo com as nossas necessidades espirituais. Entre esses avultam a riqueza, as posições sociais, a saúde, os prazeres dos sentidos, as honras, as dignidades, a influência política, os filhos, os parentes, os amigos, etc. Há ainda os bens intelectuais: a inteligência, a cultura, o preparo profissional, a vocação artística, etc. E acima de tudo isso, como dom supremo, de que decorre também a nossa mais alta responsabilidade, há o livre-arbítrio espiritual — a faculdade de escolher livremente entre o bem e o mal, entre a verdade e a falsidade, entre uma boa e uma má conduta.
Este é o dom supremo porque é ele que nos dá a personalidade; é ele que constitui o nosso eu; é ele que faz com que sejamos nós mesmos, isto é, seres independentes do Criador; seres capazes de retribuir livremente o Divino Amor, ou de se afastar dele sem sermos constrangidos nessa escolha. Para permitir o pleno exercício do livre-arbítrio, o Senhor ainda nos deu a racionalidade, que é a faculdade de compreender, de entender a verdade; a faculdade de perceber e admirar as maravilhas da Divina Sabedoria.
A liberdade e a racionalidade são as características essenciais do ser humano. São as faculdades que o tornam verdadeiramente um mordomo do Senhor; podendo administrar livre e racionalmente os bens que Ele lhe confiou. Nessa administração somos solicitados por duas espécies antagônicas de influências. As que vêm de cima — do céu —, procurando nos conduzir a um bom emprego dos bens do Senhor; e as que nos vêm de baixo — do inferno — esforçando-se para nos levar ao desbarato desses bens.
As influências inferiores encontram um forte apoio em nossas tendências hereditárias para o mal, cujos prazeres têm atrativos quase irresistíveis para o homem decaído. Os prazeres do mal são tão sedutores, tão fortes, tão empolgantes, que homem algum poderia resistir-lhes sem o auxílio do Senhor. Esse auxílio nos é dado através das relíquias; isto é, dos estados de bem e de verdade armazenados em nosso íntimo durante a infância e a adolescência. As relíquias são constituídas por sentimentos muito puros e suaves, e por ensinamentos verdadeiros que nos foram transmitidos pelo Senhor nos primeiros anos de nossa vida, por intermédio de nossos pais, de nossos professores e de outras pessoas boas e sensatas com quem convivemos. Esses sentimentos e esses ensinamentos ficam gravados em nosso homem interno e são depois utilizados pelo Senhor para servir de veículo e de apoio às influências superiores. Desta forma, o influxo infernal, apoiado em nossas tendências hereditárias para o mal, e o influxo celestial, apoiado nas relíquias, se equilibram, deixando-nos com plena liberdade de escolha entre eles. É a Divina Providência do Senhor que preside a esse equilíbrio, velando ininterruptamente para que jamais seja rompido, pois isso acarretaria a destruição de nossa personalidade, quer fôssemos arrastados para o céu pelo influxo superior, quer fôssemos arrastados para o inferno, pelo influxo inferior.
No primeiro caso, não poderíamos gozar a bem-aventurança celeste porque os nossos males ainda não vencidos seriam um obstáculo à percepção dos seus prazeres. Ficaríamos na situação de um prisioneiro dentro de um palácio cheio de coisas maravilhosas que não podia usufruir. Esse prisioneiro, evidentemente, ansiaria por se libertar, não obstante as maravilhas de que estava cercado. No segundo caso, gozaríamos os prazeres do mal, mas seríamos sempre torturados pelos remorsos produzidos pelos bons sentimentos que ainda continuariam a existir em nosso íntimo.
Só no pleno exercício de nossa liberdade espiritual — de nosso livre-arbítrio — é que podemos realizar a obra da regeneração e nos tornar, depois da morte, um verdadeiro cidadão do Reino de Deus, podendo gozar integralmente os privilégios que essa qualidade confere. Porque dessa forma escolhemos livremente o caminho da cooperação com o Senhor. Por outro lado, é também apenas pelo livre-arbítrio — e, nesse caso, mal empregado — que podemos, depois de escolher o caminho oposto, nos sentir à vontade no inferno.
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O Senhor criou a todos nós para sermos eternamente felizes no céu, mas não pode nos constranger a ir para lá. É preciso que o queiramos, e o queiramos livremente. Por isso Ele nos coloca aqui, neste mundo, em condições de podermos fazer a nossa escolha sem constrangimento. Essas condições, constituídas pelas vicissitudes de nossa vida cotidiana, pelos fatos, pelos acontecimentos de nossa existência no mundo, pelas influências do meio em que vivemos, pelos dotes físicos e intelectuais que possuímos, pela ação dos influxos espirituais a que estamos sujeitos; são todas escolhidas e dosadas pela Divina Providência, tendo em vista a natureza de nosso amor dominante e do hereditário com que nascemos.
Os bens que o Senhor nos confia para administrar não são um dom arbitrário de sua munificência; mas, ao contrário, determinados pela Sua Divina Sabedoria, visando a nossa preparação para o desempenho da função que Ele nos destinou no Macro-Homo, isto é, no céu, e levando em conta as nossas qualidades hereditárias.
A maior ou menor beleza ou fealdade de nosso corpo físico, a sua maior ou menor robustez, a excelência ou precariedade de sua saúde, os bens materiais mais ou menos abundantes ou escassos, as aptidões intelectuais mais ou menos desenvolvidas, as habilidades profissionais ou artísticas em maior ou menor grau, as honrarias, o poder em menor ou maior escala; tudo isso nos é conferido de acordo com as nossas possibilidades de virmos a exercer uma determinada função no céu — a função para a qual fomos criados. E tudo isso pertence ao Senhor, tudo isso faz parte da propriedade que Ele nos deu para administrar.
Seremos um bom mordomo se administrarmos esses bens segundo os desígnios do Senhor, isto é, usando-os em nossa preparação para a vida do céu. Seremos, ao contrário, um mordomo de que o Senhor ouvirá falar mal, se malbaratarmos a Sua propriedade, usando-a unicamente para a satisfação de más paixões.
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Em geral, nós todos começamos por ser péssimos administradores dos bens que o Senhor nos confiou. Vivemos entregues ao amor de si e ao amor do mundo, absorvidos inteiramente pelos prazeres que dele decorrem, sem a menor preocupação pelas coisas espirituais e na mais completa ignorância de tudo que diz respeito à vida futura e à nossa missão neste mundo.
Chega um momento, porém, em que, providencialmente, somos levados a pensar sobre a nossa situação espiritual e a reconhecer o mau caminho que estamos seguindo. Se somos bem intencionados e, sob a impressão produzida pelas verdades que chegaram ao nosso conhecimento, desejamos sinceramente nos regenerar, então reconheceremos que estamos dissipando os bens do Senhor e que, por isso, não somos mais dignos de ser seu mordomo. Um exame de consciência nos fará ver os erros que temos cometido e os males que temos praticado. Isso nos deixa aflitos porque ainda não sabemos como sair do estado mau em que nos achamos.
É levando-nos a refletir sobre a nossa vida que o Senhor nos faz prestar contas de nossa mordomia e nos inspira o receio de perdê-la. Temos a impressão de que estamos irremediavelmente perdidos e de que não poderemos mais continuar a gozar da ilusória tranqüilidade em que vivíamos, administrando insensatamente os bens que estavam sob a nossa guarda; empregando na satisfação de nossos maus sentimentos os conhecimentos do bem e da verdade que nos haviam sido transmitidos para servir na obra da regeneração.
Os ensinamentos acima mencionados estão todos contidos no sentido espiritual dos primeiros versículos da parábola do mordomo infiel:
“Havia um homem rico, o qual tinha um mordomo; e este foi acusado perante ele de dissipar os seus bens. E ele, chamando-o, disse-lhe: ‘Que é isto que ouço de ti? Dá contas da tua mordomia, porque já não poderás mais ser mordomo’. E o mordomo disse consigo: ‘Que farei, pois que o meu Senhor me tira a mordomia?’” (Lucas 16,1-3)
Esta pergunta ansiosa, todos nós fazemos quando, acossados pela tentação, nos sentimos perturbados com a perspectiva de perdermos a nossa vida espiritual. Nas tentações, os espíritos infernais nos acusam, fazendo-nos recordar os males que temos praticado e insinuando-nos a idéia de que para nós não há mais salvação. Se já fizemos tão mau uso das verdades que conhecíamos, que nos adiantará procura na Palavra novas verdades? “Cavar não posso”, diz o mordomo aflito. “Cavar” significa procurar aprofundar-se no estudo da Palavra com a intenção de alcançar as verdades ocultas do seu sentido espiritual. Isto ele acha que não pode fazer. Na tentação nos sentimos incapazes de descobrir as verdades com que nos poderíamos libertar da opressão dos maus espíritos. A inquietação, o desassossego, a tristeza, o mal estar que se apoderam de nós tornam-nos incapazes de raciocinar sobre a verdade; sentimo-nos sem forças para “cavar” o campo da Palavra em busca da luz espiritual para dissipar as trevas mentais em que nos achamos envolvidos.
“E de mendigar tenho vergonha”, acrescenta o mordomo em seu estado de perturbação resultante do medo de perder a sua mordomia. “Mendigar” significa implorar ao Senhor os conhecimentos de que se necessita para a alimentação espiritual. Ter vergonha de mendigar é sentir-se embaraçado para voltar e pedir ao Senhor novos conhecimentos da verdade quando já malbaratou imprudentemente, numa vida egoística e má, os conhecimentos que anteriormente lhe haviam sido confiados.
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Os estados de tentação terminam freqüentemente por uma sensação de desespero; sentimo-nos sem esperança de salvação. Então nos humilhamos perante o Senhor, reconhecendo que somos incapazes de pagar o que lhe devemos. Desperdiçamos loucamente os bens e verdades que Ele nos havia dado, vivendo uma existência espiritualmente inútil. E agora no ajuste de contas, no exame de consciência que fazemos, chegamos à conclusão de que não há mais possibilidade de restituirmos ao Senhor as cem medidas de azeite e os cem alqueires de trigo que Lhe devemos.
O “azeite” representa o bem. “Cem” significa “tudo”, ou um conjunto completo. “Cem medidas de azeite” simbolizam o conjunto de todos os bens que recebemos do Senhor desde a nossa infância. O “trigo” representa a verdade de que o nosso espírito se alimenta. “Cem alqueires de trigo” simbolizam o conjunto de todas as verdades com que o Senhor tem alimentado o nosso espírito desde que começamos a ter o uso da razão.
Depois de passada a angústia da tentação e o estado de dúvida e de incerteza em que ela nos mergulha, reconhecemos humildemente que todos os bens e verdades que possuímos são do Senhor, nos foram conferidos por Ele, e que pela vida má que temos levado, desperdiçamos toda essa riqueza, não havendo mais possibilidade de recuperarmos o tempo inutilmente perdido para a nossa vida espiritual — o tempo que empregamos insensatamente na satisfação de nosso egoísmo e de nosso amor aos prazeres puramente sensuais. Tomamos então a resolução de mudar de conduta, de começar uma vida nova de acordo com os mandamentos do Senhor.
O pagamento integral de nossa dívida para com o Senhor seria o emprego, em nossa vida prática, de todos os conhecimentos do bem e da verdade à medida que os fôssemos recebendo e desde o momento em que começamos a entrar no pleno uso da racionalidade e da liberdade espiritual; isto é, desde que saímos da adolescência e entramos na mocidade. Como, porém, desperdiçamos muitos anos da mocidade e mesmo da maturidade vivendo só para o mundo e para a satisfação do nosso eu, não há mais possibilidade de virmos a saldar inteiramente o nosso débito.
Temos, porém, a possibilidade de mudar de vida daqui por diante; temos a possibilidade de assentar a resolução de pagar o que ainda é possível, vivendo o resto de nossa existência em obediência aos ensinamentos do Senhor que Ele nos oferece abundantemente em Sua Palavra.
Então, como devedores do Senhor, nos assentamos, tomamos a nossa obrigação e escrevemos “cinqüenta” na coluna de nosso débito de “azeite”, e “oitenta” na de nosso débito de “trigo”. “Cinqüenta”, quando em confronto com “cem” na letra da Palavra representa “um pouco” ou “o que ainda é possível” — o pouco que ainda poderemos pagar. “Oitenta”, sendo o duplo de quarenta, que simboliza a tentação, representa as tentações das duas espécies — as naturais e as espirituais —, as do entendimento e as da vontade; tentações produzidas pelos conhecimentos da verdade que procuramos aplicar na correção de nossos erros e na expulsão de nossos males.
Depois de assentada a nossa resolução, vamos pagar o Senhor “cinqüenta medidas de azeite”, isto é, vamos daí por diante viver uma vida boa, uma vida em que os bens recebidos do Senhor serão aplicados em nossa conduta; e vamos pagar “oitenta alqueires de trigo”, isto é, vamos nos esforçar por aplicar a verdade à vida, resistindo a todas as tentações para nos afastarmos desse caminho. É dessa forma que conquistaremos o direito de ser “recebidos em suas casas” quando formos desapossados da mordomia.
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Durante as tentações sentimo-nos aflitos pela ameaça de sermos desapossados da mordomia. Sentimo-nos aflitos porque reconhecemos que fizemos um péssimo emprego dos bens que o Senhor nos confiou e que, portanto, não somos mais dignos de continuar a administrá-los. Vamos perder a mordomia; vamos perder os conhecimentos do bem e da verdade que não soubemos ou não quisemos aplicar à nossa vida.
Nesses momentos angustiosos da tentação, o Senhor está vigilante em nós, agindo pela Sua Divina Providência para nos levar a um estado de humildade e de reconhecimento de nossos males e de nossos erros. Quando isso se dá, a tentação chega ao fim e, pela vitória alcançada, galgamos mais um degrau na escada da regeneração. Os conhecimentos do bem e da verdade que estavam apenas em nossa memória e em nosso entendimento, vão ser agora incorporados à nossa vida. De simples administradores desses bens, vamos passar a seus proprietários. Perderemos a mordomia, mas seremos “recebidos em suas casas”, isto é, em vez de simples mordomos, passamos a ser membros da família.
Os conhecimentos do bem e da verdade que possuíamos antes da tentação, não eram propriamente nossos; apenas nos tinham sido confiados pelo Senhor para administrá-los, isto é, para estudá-los, para raciocinar sobre eles e decidir, livremente, se os adotaríamos ou não como regras da vida. Depois de passada a tentação, a vitória sobre os nossos males faz com que esses conhecimentos sejam incorporados ao nosso patrimônio espiritual.
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É chocante o fato de ser louvado o mordomo infiel ao praticar mais um ato de infidelidade, reduzindo arbitrariamente as dívidas dos devedores de seu senhor com o intuito de granjear a boa vontade desses devedores. E foi justamente o senhor prejudicado que o louvou. Examinando mais a fundo a narração da parábola, verificamos, entretanto, que não foi a nova infidelidade do mordomo que deu lugar ao elogio de seu senhor, mas sim a habilidade e a prudência com que procurava sair da apertura em que se encontrava por perder a mordomia.
O Senhor, compondo dessa forma a parábola, queria, exatamente, salientar a prudência do mordomo, mostrando como os homens naturais — os filhos deste mundo — são hábeis na maneira de resolver as dificuldades com que se defrontam. “São mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz”. O Senhor deseja que empreguemos no cuidado das coisas espirituais tanta habilidade, tanta prudência quanto os filhos do mundo empregam no trato de seus negócios mundanos.
Realmente, a prudência, a astúcia, a esperteza dos homens naturais no trato de seus negócios mundanos — na sua geração — é maior do que a habilidade dos homens espirituais, tratando das coisas espirituais — das coisas de sua geração. O homem natural, dominado pelo egoísmo e pelas paixões mundanas, põe muito mais ardor na defesa de seus interesses egoísticos do que o homem espiritual na defesa do bem e da verdade. As paixões infernais que empolgam o homem materialista são mais ardentes do que o amor espiritual do homem que começa a sua regeneração.
Se observarmos com atenção as pessoas da Igreja — que estão na posse do inestimável tesouro da Doutrina Celeste da Nova Jerusalém —, verificamos que mesmo essas pessoas se inflamam muito mais defendendo os seus interesses materiais do que na defesa dos interesses da Igreja. São poucos — muito poucos, mesmo — os que se preocupam com as necessidades da Igreja. Isso acontece porque as tendências hereditárias para o mal antes de serem inteiramente vencidas pelo progresso da regeneração fazem com que o homem prefira as coisas materiais às espirituais. “Os filhos desse mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz”. Os homens mundanos e materialistas são mais prudentes e mais hábeis no cuidado das coisas do mundo, do que os homens espirituais no trato de seus interesses eternos.
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O homem, antes de ser iniciada a obra de sua regeneração, transforma em “riquezas da injustiça” os bens que o Senhor lhe confiou, empregando-os na satisfação de suas más paixões. Quando, porém, a regeneração começa, ele precisa empregar essas “riquezas da injustiça” na aquisição dos bens e das verdades de que necessita para ser recebido nos “tabernáculos eternos”, isto é, no céu.
Quando a luz se faz em nosso espírito e reconhecemos a maneira injusta porque estávamos empregando os conhecimentos do bem e da verdade que possuíamos, compreendemos a necessidade de mudar de vida, dando a essas riquezas o seu verdadeiro uso, que é a nossa preparação para sermos recebidos no Reino do Senhor — nos tabernáculos eternos. Por isso o Senhor nos diz: “Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando necessitardes, vos recebam nos tabernáculos eternos”.
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“Quem é fiel no mínimo, também é fiel no muito; quem é injusto no mínimo, também é injusto no muito”. As relíquias que o Senhor armazenou em nosso íntimo para servirem, mais tarde, de base à nossa regeneração, são o mínimo a que devemos ser fiéis, para que possamos, depois, ser fiéis no “muito”, isto é, para que possamos ser fiéis às verdades espirituais com que se fará a obra da regeneração. O “mínimo” representa também as verdades da letra da Palavra, e o “muito” as verdades de seu sentido espiritual. Não podemos ser fiéis a estas sem primeiro sermos fiéis àquelas. É sendo fiéis às verdades literais ou naturais que nos prepararemos para ser fiéis às verdades espirituais ou internas. É só depois de reformada a nossa conduta com as verdades da letra que poderemos iniciar a regeneração à luz das verdades espirituais.
As verdades da letra são “a riqueza injusta” quando as empregamos para justificar os nossos atos maus; e neste caso não haverá possibilidade de adquirirmos “a riqueza verdadeira” constituída pelas verdades internas da Palavra. “Se na riqueza injusta não fostes fiéis, quem vos confiará a verdadeira?”.
As verdades que vamos aprendendo só se tornam verdadeiramente nossas quando as aplicamos à nossa vida. Antes disso, elas são “o alheio” a que se refere o versículo seguinte: “Se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso?” Isto é, se não formos fiéis às verdades — que nos são alheias porque não nos pertencem ainda, mas ao Senhor — nunca chegaremos a possuí-las verdadeiramente; nunca nos serão dadas como sendo nossas.
O versículo final da série que constitui esta parábola nos diz que: “Nenhum servo pode servir a dois senhores; porque, ou há de aborrecer um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mammon”. No sentido espiritual, o versículo final de uma série contém sempre o resumo e a conclusão do assunto tratado em toda a série.
Vemos que esta parábola, no sentido interno, trata da regeneração do homem, ensinando-nos que para realizá-la devemos usar tanta habilidade e prudência quanto os homens do mundo empregam para resolver as dificuldades da vida mundana. Ela nos ensina também que usando mal os conhecimentos do bem e da verdade, nos arriscamos a perder a nossa vida espiritual, como o mordomo infiel perdeu a sua mordomia. Ensina ainda que para podermos ser fiéis às verdades espirituais precisamos, primeiro, ser fiéis às verdades da letra, e que apenas pela aplicação da verdade à vida é que adquirimos a plena propriedade dos bens e das verdades que conhecemos.
Tudo isso, porém, tem que ser feito com inteira fidelidade e dedicação ao Senhor, e completo afastamento do mal e da falsidade. Não podemos servir ao Senhor, conservando as nossas ligações com o mal. A regeneração só se processa quando rompemos definitivamente com a vida antiga. Não é possível progredir no caminho do bem, enquanto não abandonamos de vez o caminho do mal.
Aqueles que imaginam poder praticar o bem, continuando a gozar os prazeres do mal, estão completamente enganados. “Nenhum servo pode servir a dois senhores”. Para servir bem ao Senhor, é preciso que nos desliguemos inteiramente do serviço do demônio; isto é, do mal; pois o mal é o oposto do bem e, portanto, inimigo do Senhor que é a Fonte de todo bem.
Para amar ao Senhor é, pois, indispensável aborrecer o amor de si — a principal fonte do mal. Para nos chegarmos ao Senhor temos forçosamente que desprezar o amor do mundo, outra grande nascente do mal.
“Não podeis servir a Deus e a Mammon”.
Amém.

•   1ª Lição:     Lucas 16, 1-13
•   2ª Lição:     Mateus 25, 1-30