A MÓ


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Não se tomarão em penhor as mós ambas, nem a mó de cima nem a de baixo, pois se penhoraria assim a vida”.

(Deuter. 24,6)

No tempo de Moisés era indispensável às famílias orientais um moinho de mão para moer o trigo. Esse moinho consistia em duas pedras, colocadas uma sobre a outra. A pedra inferior era maior e mais pesada do que a superior e era ligeiramente côncava na face de cima. Ficava imóvel enquanto a outra, ligeiramente convexa, para ajustar-se a ela, era movida circularmente por meio de um punho de madeira ou de ferro. Com este rústico instrumento, o grão era transformado em farinha com que se fazia o pão de cada dia. Do seu uso constante dependia o principal alimento da família. Se uma ou outra das pedras fosse tirada, a família sofreria privação do alimento essencial à sua vida. Neste caso, o pão indispensável à manutenção tanto da alma como do corpo, teria então que ser mendigado ou tomado emprestado de outros, de cuja boa vontade ou caridade a família ficaria dependendo. Foi nessa circunstância que se baseou a justiça da lei mosaica que proibia tomar um moinho ou uma de suas mós em penhor. Aquele que, por infortúnio ou pobreza, via-se forçado a contrair dívidas, era obrigado a dar em penhor alguma coisa para garantir o pagamento de seu débito. Não era, porém, permitido ao credor levar aquilo que fosse essencial à vida do devedor, para evitar que lhe fosse infligido, assim como à sua família, um sofrimento desnecessário. O moinho com que ele moia o trigo, ou uma de suas mós, não podia ser exigido como penhor, pois isso equivalia a tomar como penhor a sua própria vida.
Esta lei aplicada à vida dos judeus, era uma lei de caridade, de respeito e consideração pelo próximo. Exigia do rico e do poderoso um certo grau de comiseração pelo pobre e pelo necessitado, protegendo-os assim contra a crueldade. E nesse sentido mais lato, envolve uma lei de justiça que ainda está em vigor. Pois embora a primitiva mó tenha desaparecido há muito tempo, ainda existem em nossa civilização mais complexa, aquelas desigualdades de posição e de recursos que dão a uns o poder de tratar duramente aos outros.
Fazer isso desnecessariamente, é contrário à eterna lei de Deus, porque provém do amor de si, do desprezo pelos outros e da falta de caridade para com o próximo, caridade que constitui a base mesma da sociedade humana sobre a terra e do reino do céu depois da morte. Esta verdade é universalmente reconhecida onde quer que haja um sentimento de justiça e uma conduta correta. Interpretando moralmente este antigo estatuto, vê-se que ele ainda é observado externamente entre os homens. A infração deste preceito levanta sempre um sentimento de indignação e de repulsa; pelo contrário, a sua devida aplicação é recompensada com a estima e a consideração públicas.
Esta lei tem também uma aplicação à vida espiritual do homem e à sua salvação eterna. Nisto reside o seu conteúdo Divino, de onde se deriva um poder mais profundo do que o de qualquer preceito puramente moral. Por isso ela assume uma importância muito acima de tudo que aparece em seu sentido literal. Pois em sua interpretação espiritual, ela se torna uma lei da vida religiosa. E foi quanto a essa interpretação espiritual que ela deixou de ser reconhecida. Quanto a isto, ela é quase universalmente ignorada, negada e violada em todo o mundo cristão.
Como um preceito de religião, ela proíbe que se prive alguém daquelas coisas que são essenciais à sua vida espiritual e, especialmente, dos meios de preparar o pão do céu para seu alimento diário. Pois a alma do homem, como o seu corpo, precisa ser sustentada pelo alimento que é chamado “o pão da vida”. E este pão deve passar por um processo de preparação semelhante à mastigação do alimento entre os dentes superiores e inferiores, antes que possa ser assimilado pelo espírito e incorporar-se à vida do homem. Essa preparação que é tão vital, hoje, ao progresso e bem estar espiritual do homem, quanto o tem sido desde o começo do mundo, é representativamente figurada pela moagem do grão entre as duas pedras a que se refere o nosso texto.
“O pão de Deus é Aquele que desce do céu e dá vida ao mundo”. É o Senhor Mesmo, revelado e manifestado na Sagrada Escritura. Por isso, quando tentado pelo diabo no deserto para transformar as pedras em pão, como um sinal de Sua Divindade, Ele respondeu com as palavras de Moisés: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. A Divina Verdade é o alimento dado ao espírito do homem; e dado com abundância pela Misericórdia e Providência do Senhor que tem feito com que a Sua Palavra permaneça através de todas as idades para salvação da humanidade. Esta Divina Verdade não pertence ao homem. É do Senhor. Em si mesma, está infinitamente acima do entendimento humano. Mas dela deve ser tirado tudo o que é apropriado à vida do homem, tudo o que pode ser trazido ao alcance de sua razão e que pode ser aplicado às circunstâncias de sua vida e às suas condições e, por isso, servir de alimento para seu espírito na vida eterna.
Esta Divina Verdade é como o produto da terra, o grão da colheita que brota generosamente do solo para servir ao homem. E é semelhante porque, antes da sua aplicação prática ser compreendida e de ser percebido o seu uso próprio, precisa ser recebida pelo entendimento de cada homem, individualmente. Pois a mente de cada homem tem qualidades e forma distintas de todos os outros. Tudo o que ela recebe, para se tornar uma parte integrante do homem, precisa ser moldado e estampado de acordo com o seu caráter individual. Milhões de idéias recebidas de outros são impressas em nossa memória; muitas delas, porém, são alheias à nossa vida e não fazem vibrar as cordas de nosso coração. Podemos reconhecer a veracidade ou a falsidade dessas idéias, abstratamente, mas a sua aplicação mais profunda e, especialmente, a sua adaptação às nossas circunstâncias ou condições pessoais, permanecem obscuras para nós. É isso que se dá com muitos dos ensinamentos recebidos na infância e na juventude, aceitos sob a autoridade de quem os ministra sem qualquer compreensão de sua significação.
Podemos falar e agir de acordo com esses ensinamentos, mas não com julgamento e sabedoria. Uma mente provida assim de ensinamentos não assimilados, pode ser comparada ao fruto imaturo em que a semente ainda não está formada e do qual, por conseguinte, nenhuma vida pode provir. É somente por uma processo individual do pensamento no empenho do cumprimento a uma obrigação pessoal ou de resolver nossos problemas que se apresentam, que o seu conhecimento é lentamente amadurecido pela experiência, isto é, posto em uma forma adaptada à sua própria mente, de modo a tomar a qualidade de seu amor e de sua vida. Então a significação interna, o seu alcance mais profundo é compreendido e assimilado, tornando-se propriamente da pessoa, propriamente nosso. Podemos então entendê-lo verdadeiramente, pensar sobre ele, julgá-lo sabiamente e agir confiantemente por ele. Só depois disso é que, pela primeira vez, ele começa a exprimir o seu amor e a construir o seu caráter. Torna-se assim um alimento para o nosso espírito, adequado ao sustento de nossa vida mental e espiritual. É este processo de pensar por nós mesmos que é comparado, no texto, à moagem do trigo e à preparação do pão.
É geralmente sabido que esse pensamento individual, resultante do esforço pessoal e direto, é essencial para sermos bem sucedidos no plano natural, em qualquer empreendimento humano, e que a luta para resolver problemas difíceis desenvolve a nossa competência, fortalece a nossa vontade e edifica o nosso caráter. Mas a necessidade desse pensamento individual em relação aos problemas da vida espiritual, a necessidade do entendimento pessoal das leis Divinas para que possamos enfrentar e vencer os obstáculos que dificultam a nossa regeneração, e assim fazendo, fortalecer o poder espiritual de nossa vontade contra o mal, e construir o nosso caráter espiritual — essa necessidade, geralmente, ou é ignorada, ou é negada. Que homem jamais foi capaz de executar qualquer trabalho de valor duradouro? Quem jamais encarou por si mesmo um sério problema da vida? Quem jamais concentrou toda a sua mente e a sua vontade para vencer obstáculos e solucionar dificuldades? Quem jamais fez qualquer dessas coisas, pondo de lado sua responsabilidade e marchando pela estrada de menor resistência? Entretanto, é justamente isso que os homens aprendem a fazer em relação à sua vida espiritual.
Quase todo o mundo cristão chegou a um estado de suprema indiferença pelas coisas espirituais. É como se uma atmosfera envenenada, tornando a mente refratária a qualquer sensação do que é Divino e celeste, tivesse se espalhado sobre a superfície da terra. E a planta que exala esses vapores mefíticos brotou da própria Igreja Cristã, saindo de três raízes distintas de ensinamentos religiosos. Estas três doutrinas que, em seu conjunto, abrangem quase todos os ramos do pensamento cristão, podem ser formuladas simplesmente assim:
Primeiro, os mistérios da teologia e da religião são reservados ao clero, sendo prejudicial e inconveniente a sua investigação pela generalidade dos homens. O entendimento das coisas espirituais deve ser mantido na obediência à fé, dependendo a salvação da mera observação literal das regras prescritas e dos regulamentos da Igreja. Segundo, a única coisa essencial à salvação é uma fé cega na expiação feita por Jesus Cristo somente. E, terceiro, a única verdade de que os homens podem ter certeza é a que pode ser física e experimentalmente demonstrada. Além disso, nada existe a não ser conjecturas falíveis e opiniões sem fundamento; portanto, qualquer tentativa para compreender os mistérios da religião é vã e ilusória.
Há, com efeito, muito poucas pessoas, no moderno mundo cristão, para quem uma ou outras destas doutrinas não se tenha tornado uma convicção assentada. E todas elas desencorajam e afastam os homens de qualquer esforço individual sério para procurar e achar a verdade interna da religião. Influenciados por estes pontos de vista tradicionais, os homens de todas as seitas e confissões doutrinais abandonam completamente qualquer esforço para pensar espiritualmente. Fecham deliberadamente os olhos aos problemas mais profundos da vida humana. Concentram todas as energias na exploração da natureza e na feliz solução das dificuldades que envolvem a manutenção de uma civilização material altamente complicada. E a Igreja é a única culpada dessa situação. Ensinando que a verdade interna da Sagrada Escritura — que contém a revelação de Deus Mesmo, do modo pelo qual Ele renova e regenera o coração humano e desvenda a qualidade da vida do homem além da sepultura — é proibida, ou desnecessária, ou inacessível aos homens, ela está violando a lei espiritual envolvida em nosso texto: “Não se tomarão em penhor as mós ambas, nem a mó de cima, nem a de baixo; pois assim se penhoraria a vida”.
Os filhos inocentes da raça e a massa de homens que dependem de ensino da direção da Igreja para sua orientação espiritual — todos os que, com o sentimento da pobreza e da necessidade pessoal, procuram a solução dos mais profundos e vitais problemas da vida humana, e vêm suplicantes aos que são considerados ricos em sabedoria celeste —, recebem a intimação de dar uma mó em penhor. Devem aceitar o ensino tradicional da Igreja sem discussão, ou se isso é impossível, devem se satisfazer com a crença de que nenhuma resposta segura a seus problemas jamais foi dada aos homens.
São informados de que não devem pensar a respeito dessas coisas. São informados de que o conhecimento delas não é essencial à sua salvação. Asseguram-lhes que a plena responsabilidade de sua salvação permanece ou com a Igreja ou com Jesus Cristo, o Mediador, ou com um Deus invisível de quem nada se pode saber. São informados de que nenhum entendimento ou compreensão racional das leis Divinas e dos princípios que governam a vida espiritual é necessário, e que serão levados ao céu miraculosamente, sem saber em que direção ele fica ou por qual caminho serão Divinamente levados a se aproximar dele. Por este ensino é dada aos homens uma falsa segurança. Em vez de serem levados e inspirados a vencer a lassidão natural e a lutar para alcançar o conhecimento da verdade espiritual, são entorpecidos em relação a todas as coisas que dizem respeito à vida futura e à sua felicidade depois da morte. Todo incentivo a investigar, a estudar e a refletir sobre a significação Divina da Palavra do Senhor lhes é tirado, sendo deixados espiritualmente sem amparo, como acontecia com aqueles que antigamente não tinham moinho com que moer o grão.
O Senhor faz crescer o grão — o dourado grão da verdade do céu contendo os elementos nutritivos essenciais à vida espiritual dos homens; os campos de Sua Divina Palavra estão já “brancos para a colheita”. Mas o homem precisa segar e colher o grão; precisa moê-lo para transformá-lo em farinha no moinho de sua própria mente, pelo ativo e ardente pensamento sobre o seu valor e o seu emprego, antes que possa se tornar eficaz para a sua salvação. Este é o propósito interno da mente humana, a razão por que foi dada ao homem uma mente racional. E não há criança normal, nascida no mundo, a quem o misericordioso Criador não tenha dado sede de conhecimentos, desejo de aprender a verdade, amor de aprofundar as causas e investigar os fins quando depara com os mais difíceis e intrincados problemas espirituais. E Ele nos dá isso porque somente por esse meio pode o Senhor alimentar a nossa mente com o pão do céu. O Senhor instiga a todo homem a usar estes predicados da racionalidade doados por Deus, mesmo em relação às coisas Divinas e celestes. “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”.
Este impulso e inventivo a pensar, é a mó que tem sido tomada em penhor. E a não ser que seja restituída, toda a família humana passará fome no meio da abundancia, porque o pão vivo da Divina Verdade permanecerá inassimilável, pois foi cumprida a profecia do Senhor referente à Igreja Cristã em seu fim: “O ruído da mó não será mais ouvido em ti” (Apoc. 18,22). É a lei Divina que todo homem deve pensar a respeito das coisas do céu e da vida eterna, não efetivamente de si mesmo, o que conduz somente à falsidade, mas por si mesmo, e segundo a Palavra de Deus, reconhecendo a sua própria ignorância, compreendendo a sua própria necessidade, rogando que o Senhor em Sua misericórdia alimente essa necessidade pela ilustração e iluminação. Se os homens viessem, assim, somente a Ele, com o coração aberto, trabalhando por seus próprios esforços para ver a verdade, Ele os alimentaria e elevaria para sempre. Quando “os olhos de todos esperam por Ti, ó Senhor, Tu lhes dás o seu alimento na estação devida. Tu abres a mão e satisfazes o desejo de toda coisa viva”.
A aproximação direta do Senhor em Sua Palavra, é agora possível como nunca o foi antes na história do mundo. Os homens, por meio da educação natural, pelo uso determinado de suas faculdades mentais na aprendizagem das leis e princípios naturais, saem das trevas externas e da ignorância para a idade da ração iluminada. Estes conhecimentos mundanos trazem consigo uma força, uma liberdade e uma alegria mais profundas do que se pode conhecer entre os selvagens ignorantes ou pelos escravos dependentes. Esta liberdade está no centro da felicidade humana e por sua final realização os homens têm sofrido os amargos horrores da guerra prolongada. Mas tudo isso conduzirá apenas à ruína e à destruição final da sociedade humana, se não for acompanhado por um correspondente sentimento de responsabilidade espiritual. Se os homens não forem ao mesmo tempo levados a compreender e a guardar as leis do céu, eles apenas abusarão do conhecimento das coisas da terra para a eterna destruição de suas almas.
Nos nossos tempos, é imperioso que seja dada aos homens uma revelação racional da Divina Verdade para que possam educar-se espiritualmente e ficar imbuídos de conhecimentos referentes à vida espiritual, sendo inspirados a aprender os princípios da regeneração e da salvação, a fim de que possam receber a liberdade interna análoga à do céu. O Senhor deseja que todo homem assuma a sua própria medida de responsabilidade, que enfrente e resolva, como por si mesmo, e pela imediata direção do Senhor, os problemas de sua vida espiritual; agindo, para solução das dificuldades espirituais, com o grau de vigor e de determinação necessários à construção de seu caráter espiritual, para fazer-se um homem do ponto de vista do céu.
Com este propósito, a significação interna da Palavra é agora racionalmente desvendada pelo próprio Senhor; e foi dada ao homem uma mente capaz de apreender e compreender o Seu ensino celeste. Todos aqueles que, no mundo, têm fome espiritual são chamados a aplicar sua mente, a usar as faculdades que lhe foram dadas Divinamente, a pensar ativamente, considerando e investigando os problemas espirituais contidos na Palavra de Deus. Por nenhum outro meio pode ser recebida a educação espiritual com a conseqüente intuição e sabedoria, de onde somente pode provir a verdadeira liberdade espiritual.
Todo homem deve moer diariamente o grão da verdade celeste para fazer farinha no moinho de sua própria mente, para saciar a fome espiritual pelo verdadeiro entendimento da mensagem do Senhor; para que possa livremente guardar as leis que governam sua vida espiritual e tornar-se verdadeiramente útil no reino de Deus. Então, em resposta a esta ativa indagação e pesquisa, o Senhor abrirá para ele o conteúdo interno de Sua Palavra, tornará claro o seu uso, conceder-lhe-á o sentimento do bem, a alegria que este sentimento envolve, e será guiado por Deus no caminho da verdade. É isto a pedra da mó que é agora restituída de acordo com as palavras do Senhor: “Examine as Escrituras porque nelas vós pensais que tendes a vida eterna e são elas que testificam de Mim”.
A todos que, no mundo, compreendem a sua responsabilidade, que podem alcançar esta atitude da mente para com a Palavra de Deus, que podem aproximar-se com coração humilde para indagar d’Ele o caminho da vida, o Senhor dá agora o conhecimento da verdade interna do céu, que é o verdadeiro pão da vida para o espírito do homem. “Vinde, comprai e comei; sim, vinde, pois, comprai sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Para que gastais dinheiro naquilo que não é pão? E o produto de vosso trabalho naquilo que não pode fartar? Ouvi-me atentamente, e comei o bem, e a vossa alma se deleitará na gordura. Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá, porque convosco farei um concerto perpétuo, dando-vos as firmes beneficências de David”.
Amém.

•   1ª Lição:     Jeremias 25, 1-4
•   2ª Lição:     Apocalipse 18
•   3ª Lição:     A. R. 794