A FUNÇÃO DA PROFECIA


Sermão pelo Bispo George de Charms


“Eu vo-lo disse agora antes que aconteça,
para que, quando acontecer, vós acrediteis”.

(João 14, 29)

Por três vezes sucessivas o Senhor falou a Seus discípulos abertamente a respeito de Sua próxima morte e ressurreição. Sua linguagem era inconfundível, como quando Ele disse: “O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e matá-lo-ão, e ao terceiro dia ressuscitará” (Mateus 17, 22-23). Referia-se claramente a esta profecia, dizendo na Última Ceia: “Vou preparar-vos um lugar. E, se eu for, e vos preparar um lugar, virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós também” (João 14. 2-3). “Ouvistes que eu vos disse: Vou, e venho para vós. Se me amásseis, certamente exultaríeis por ter dito: Vou para o Pai” (Idem, 28).
Mas embora falasse tão claramente, os discípulos não o compreendiam. A evidente significação de Suas palavras apresentava-lhes uma idéia que lhes parecia inadmissível. Sob o seu ponto de vista, era incrível que Ele — se é que era realmente o Messias prometido nas Escrituras — pudesse ser morto sem ter realizado a libertação de Israel. Isso constituiria uma negação de todos os conceitos, há tanto tempo estabelecidos, em que se baseava a sua fé n’Ele. Tinham por certo que, como era Seu costume, estivesse falando por parábolas. E embora cressem em suas palavras, entretanto não podiam compreendê-las.
Era, porém, de imperiosa necessidade que, embora não compreendidas, essas palavras fossem, mesmo assim, proferidas. De outra forma, a fé dos discípulos não sobreviveria à prova crucial pela qual teria de passar. E sem essa prova as idéias errôneas que tinham a Seu respeito não poderiam, absolutamente, ser corrigidas. A Igreja Cristã, por sua vez, não poderia ser estabelecida se essa fé não sobrevivesse. Assim, tanto a profecia como o seu cumprimento, eram indispensáveis. Por isso o Senhor disse: “Eu vo-lo disse antes que aconteça, para que, quando acontecer vós acrediteis”.
É esta a natureza de toda profecia Divina. Prediz o futuro com a mais minuciosa precisão, mas a sua significação não é compreendida senão depois de realizada. A Divina Misericórdia do Senhor não permite a previsão das coisas que estão para vir, nem aos homens e nem aos anjos. A essência mesma da vida humana reside no exercício da livre escolha, feita pelo julgamento racional e, portanto, no esforço consciente, realizado com a esperança de alcançar um objetivo que não está garantido. A previsão de um futuro irrevogável não só tiraria toda a esperança, como nos despojaria de todo incentivo para nos esforçarmos e afastaria de nós todo sentimento de realização. Em conseqüência, tanto a liberdade como a razão pereceriam. É, portanto, essencial à nossa proteção que a profecia não seja compreendida — que os acontecimentos não sejam conhecidos antes de realizados. Por esta razão não é dado ao homem ver a Divina Providência quer no presente, quer no futuro, mas somente no passado. Por isso o Senhor disse a Moisés:
“Não poderás ver a minha face, porquanto homem algum verá a minha face e viverá... Eis aqui um lugar junto a mim; ali te porás sobre a penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, te porei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá”. (Êxodo 33, 20,23)
O homem nasce com o desejo natural de conhecer as coisas que estão para vir.
“Mas este desejo — como ensina a Doutrina da Nova Igreja — deriva-se do amor do mal; é por isso que ele é tirado daqueles que acreditam na Divina Providência, e lhes é dada a confiança em que o Senhor prepara a sua sorte e, por conseguinte, eles não querem conhecê-la de antemão, com medo de se imiscuir de algum modo na ação da Divina Providência”. (D. P. 179)
Isso é especialmente verdadeiro em relação aos anjos, a respeito dos quais diz a Doutrina
“que quanto mais interiores e perfeitos eles são, menos se ocupam do passado e menos pensam no futuro, e que é mesmo daí que provém a sua felicidade; eles dizem que o Senhor lhes dá em cada momento aquilo em que pensam, e isso com beatitude e felicidade, e que assim não têm nenhum cuidado nem qualquer inquietação; é isso que se deve entender, no sentido interno, por receber do céu cada dia o maná; e pelo pão cotidiano na Oração Dominical, assim como por não ter cuidado pelo que comer e beber, nem pela roupa”. (A. C. 2493)
Então, se o conhecimento do futuro não deve ser permitido — se mesmo o desejo de conhecê-lo vem do mal —, qual é a necessidade ou a função da profecia? Embora isso pareça contraditório, é entretanto verdade que o futuro deve ser previsto. O homem deve procurar conhecê-lo. Disso depende a sua própria vida. “Não havendo profecia o povo fica dissoluto” (Pro. 29,18). A essência da sabedoria — tanto Divina como humana — é a previsão.
“Prover para as coisas presentes e não prover ao mesmo tempo para as coisas futuras, nas coisas presentes, seria agir sem fim, sem ordem e, conseqüentemente, sem sabedoria nem inteligência, assim não agir pelo Divino” (A. C. 5195).
“O prazer mesmo da razão é, pelo amor, no pensamento, ver o efeito, não no efeito, mas antes do efeito, ou não no presente, mas no futuro: daí vem ao homem o que se chama a Esperança, a qual cresce e decresce na razão, conforme ela vê ou espera o acontecimento” (D. :P. 178).
A não ser que o homem possa prever o futuro — e isso com relativo grau de precisão — ele não terá responsabilidade a seu respeito. Um esforço premeditado não teria qualquer utilidade. Um julgamento sábio não teria significação. Entretanto, nos foi claramente ensinado que o homem tem responsabilidade pelo futuro.
“Cada um deve primeiramente prover para si as necessidades da vida, isto é, o alimento, a roupa, a moradia e várias outras coisas que são absolutamente necessárias na vida civil em que está; e isso não somente para si, mas também para os seus; e não unicamente para o tempo presente, mas também para o futuro” (A. C. 6934).
É digno de nota que, em relação aos anjos, se diga na continuação da citação feita anteriormente: “Mas ainda que eles não se ocupem do passado e que não tenham inquietações pelo futuro, acontece que eles têm sempre uma reminiscência muito perfeita das coisas passadas e uma intuição muito perfeita das coisas futuras; porque neles em todo presente há o passado e o futuro” (A. C. 2493).
“Porque neles em todo presente há e o passado e o futuro” — aqui está a verdade que explica a aparente contradição. O conhecimento do futuro — que é, não apenas permitido, mas necessário à vida do homem — não é o conhecimento dos fatos antes que eles aconteçam, mas uma percepção do que é eterno tanto no presente como no passado. Perceber isso é ver a verdade — ver acertadamente as coisas latentes no presente; e daí formar um julgamento inteligente quanto aos efeitos que estas causas produzirão no futuro. Nada acontece sem uma causa. A causa precede o fato. Está escondida naquilo que veio antes. Por esta razão todas as coisas se sucedem em série — uma progressão contínua — “de tal modo que as coisas presentes envolvem as futuras, e que acontece o mesmo às futuras quando se tornam presentes, e assim até à eternidade; porque o Senhor prevê todas as coisas e provê a todas as coisas, e Sua Previdência e Sua Providência são eternas” (A. C. 10048).
Esta espécie de previsão não tira a liberdade do homem. Pois conquanto o passado esteja irrevogavelmente fixado, o presente é sempre fluido, sujeito a mudar de acordo com a escolha do homem. Ver a verdade, ou compreender as causas, não inibe a escolha, mas apenas habilita o homem — se quiser — a escolher sabiamente. Dá-lhe, sem compulsão, poderes para — se quiser — pensar e agir de acordo e em cooperação com a corrente da Providência, e isso ainda que ele não conheça, e não possa conhecer o que acontecerá amanhã. O interesse e a responsabilidade do homem não estão em relação com o que pode acontecer. Isto está inteiramente nas mãos do Senhor. Envolve inúmeros fatores ocultos no presente, de tal modo profundos e complexos que nenhuma mente humana pode sondar. Está sob o imediato governo do Senhor — o governo do Seu Divino Amor e de Sua Divina Sabedoria; e a Ele o nosso futuro pode ser confiado com segurança e sem ansiedades.
A responsabilidade do homem está em agir agora, no presente sempre vivo, de acordo com a Divina Providência, ou contra ela. Isso ele é livre de fazer, no grau em que compreende e reconhece a verdade da Palavra. O Senhor não lhe tira essa liberdade; não deixa de tomar conhecimento dela, mas por caminhos maravilhosos adapta Sua Divina Sabedoria à escolha do homem, de modo que “cada ato do homem produz uma série de conseqüências para a eternidade” (A. C. 5122).
A Divina profecia, portanto, não tem o propósito de revelar os acontecimentos antes que aconteçam. É dada com o intuito de revelar a Verdade, à luz da qual o homem pode julgar com previsão e inteligência quanto ao que deve fazer no presente. Neste sentido, a Palavra é profética — mesmo onde, na forma externa, é puramente histórica. Pois a sua parte histórica foi composta pelo Senhor de modo a conter, em sua significação mais profunda, uma revelação da verdade interna e imutável. Compreender essa verdade é ver o futuro quanto à sua essência; não, entretanto, quanto às formas específicas em que essa essência pode se apresentar, variando de acordo com as escolhas que os homens podem livremente fazer, mas quanto àqueles Divinos fins que, por meios impossíveis de prever pelo homem, serão atingidos a despeito de qualquer escolha humana, pela soberana Providência de Deus.
As nossas expectativas quanto aos acontecimentos futuros raramente se verificam. Na realidade, pode-se dizer que elas nunca se verificam integralmente. O nosso conhecimento é demasiado incompleto; o nosso entendimento da verdade é demasiado imperfeito. Mas se em algum grau entendemos e amamos a Palavra — por mais estranho e inesperado que o futuro possa parecer quando começa a se tornar presente — seremos capazes, até certo ponto, de reconhecer nele a mão da Providência, depois dos acontecimentos terem se realizado. Se a Palavra não tivesse sido dada — se a profecia não tivesse sido feita de antemão — esse conhecimento seria impossível, e a previsão não teria significação. Sem essa previsão não poderia haver nem liberdade nem racionalidade. Portanto o nosso texto é a mensagem universal da Palavra do Senhor: “Eu vo-lo disse agora antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis”.
Sem profecia, nenhuma Igreja poderia jamais ser estabelecida. Os Escritos também são proféticos. O Senhor, em Sua Vinda final, predisse a descida da Nova Jerusalém de Deus pelo céu, o que significa o estabelecimento de uma nova Igreja espiritual universal, estendendo-se por todo o mundo habitado — um Reino do Senhor sobre a terra, o qual não terá fim. Essa promessa, em face das atuais condições do mundo, nos parece impossível de ser cumprida. Mesmo uma simples fé cristã na Divindade do Senhor Jesus Cristo, ou na Palavra como fonte de verdade autorizada, parece estar a ponto de completa extinção.
Todo o mundo parece se mover firme e irresistivelmente para uma universal negação de tudo o que é espiritual e eterno — de tudo o que está no íntimo ou acima da natureza. A possibilidade de que os homens possam, em número crescente, vir a desejar a Verdade da Doutrina Celeste e a procurá-la com todo o coração, parece diminuir, e não aumentar, na corrente do progresso moderno. Como se fará, nos processos do pensamento humano, uma tão vasta mudança, como a que se depreende das promessas do Senhor — mudança que atinge os fins pelos quais os homens lutam —, não podemos prever. Isso está acima de toda a nossa imaginação. Podemos, portanto, ser tentados a nos entregar à ansiedade quanto ao futuro da Igreja — talvez cheguemos, às vezes, quase a desesperar. E esta provação de nossa fé pode certamente tornar-se progressivamente, cada vez mais severa.
Lembremo-nos, porém, de que como os discípulos mais antigos do Senhor, nós também temos uma idéia muito imperfeita tanto do Senhor como do Seu Reino. As nossas idéias errôneas, baseadas puramente em pensamentos naturais, precisam morrer em nós para que uma concepção mais espiritual possa nascer. Isso não pode ser feito a menos que a nossa fé na profecia permaneça firme, profundamente alicerçada na Verdade racional agora revelada na Doutrina Celeste. Precisa resistir aos embates dos acontecimentos que não tinham sido previstos nem imaginados — acontecimentos que parecem destruir todo o fundamento e toda a base de nossas esperanças. Ela resistirá a essa prova se reconhecermos a mão da Providência em tudo o que se possa manifestar, e por isso atingir uma nova visão do Senhor, uma mais interior compreensão do Seu Reino. Esta morte das idéias terrenas impróprias e a ressurreição das novas percepções espirituais da Verdade precisam ser repetidas a cada passo do nosso progresso da regeneração, e a cada estágio do avanço no genuíno desenvolvimento da Igreja.
É para prover isso, com efeito, que a profecia foi dada. Por isso o Senhor diz à sua Igreja em cada idade: “Eu vo-lo disse agora antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis”.
Amém.

•   1ª Lição:     Êxodo 33, 1-3 e 12,23
•   2ª Lição:     Mateus 17, 14-23
•   3ª Lição:     D. P. 187