A ESCADA DE JACÓ


Sermão pelo Rev. João de Mendonça Lima


“Eis uma escada era posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela”.

(Gênesis, 28, 12)

Todos nós desejamos ser felizes. Não há homem algum que não anseie pela felicidade. Sobre isso ninguém tem dúvidas. As divergências começam quando se trata de definir o que é a felicidade. Cada um tem o seu conceito próprio a respeito.
De um modo geral, para a grande maioria ela consiste na abundância dos bens materiais: riqueza, honrarias, posições de mando, e saúde. Essas coisas, entretanto, são, quando muito, complementos da felicidade, mas não constituem, por si só, a felicidade propriamente dita. Esta só se encontra na paz interna, sem a qual os bens terrenos, por mais abundantes e variados que sejam, não nos podem dar a verdadeira felicidade. É por isso que vemos tantas pessoas ricas queixando-se de sua infelicidade. É por isso que tantos homens poderosos — grandes chefes de estado, grandes guerreiros, magnatas da indústria e do comércio — têm vivido profundamente infelizes não obstante todo o seu poderio. É mesmo mais freqüente encontrar-se a felicidade entre os pobres e humildes do que entre os ricos e poderosos; porque na realidade ela independe da riqueza e do poder. O único homem verdadeiramente feliz que existia na terra — diz a lenda — era tão pobre que nem tinha camisa.
A desventura do rico e poderoso é muito mais profunda e pungente do que a do pobre e humilde. Este, em geral, se conforma com a sua miserabilidade; enquanto que aquele se revolta por não conseguir a felicidade, mesmo tendo fartura de meios para conquistá-la. A riqueza e o poder agravam a desventura do homem infeliz, dando-lhe uma impressão mais viva de sua impotência para evitar o sofrimento. Além disso, os ricos e poderosos fazendo, freqüentemente, um mau uso dos dons recebidos, sofrem as conseqüências de seus erros, que são muito mais nocivos à sociedade do que os erros dos desvalidos.
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A paz interna — fonte única da verdadeira felicidade — só se obtém pela vitória na luta contra os nossos males, isto é, quando os nossos maus sentimentos foram subjugados e substituídos pelos sentimentos bons que lhes são opostos. A inquietação, o desassossego, o mal estar interno que não nos deixam gozar plenamente os prazeres que a abundância dos bens naturais põe à nossa disposição, têm sua origem nos males de nosso coração. São os maus sentimentos: o egoísmo, o orgulho, a vaidade, o ódio, a inveja, a cobiça, o despeito, a impiedade, a preguiça, a crueldade, etc. — que impedem que nos sintamos tranqüilos, satisfeitos, felizes.
É, pois, combatendo os nossos maus sentimentos que marcharemos para a conquista da verdadeira felicidade. Ela só pode ser alcançada pela regeneração. É o prêmio que o Senhor nos dá pelos esforços despendidos na luta persistente contra as más paixões.
A felicidade — o bem supremo a que aspiramos e a que temos incontestável direito, porque fomos criados para ser felizes —, não podendo ser alcançada senão pela regeneração, segue-se que esta é a obra a que devemos dedicar todos os nossos esforços e toda a nossa atenção. A ela está ligado todo o nosso interesse; a ela devemos consagrar todas as atividades de nosso entendimento e de nossa vontade. Para isso temos que começar por saber o que é a regeneração, e depois quais os meios a empregar para realizá-la e como empregar esses meios. A regeneração, como a própria etimologia da palavra indica, é uma nova geração de nosso ser espiritual, uma nova formação de nossa vontade e de nosso entendimento, de acordo com as leis da Ordem Divina.
A vontade antiga — a vontade hereditária com a qual nascemos — é inteiramente corrupta e má; daí a necessidade de ser criada, para substituí-la, uma nova vontade pura e boa. A criação dessa nova vontade não é, porém, obra que possamos realizar; está muito acima de nossas possibilidades. Só o Senhor tem poder para fazê-la. Sendo assim, parece então que nada mais temos a fazer do que cruzar os braços e aguardar que Ele nos regenere. Porém, muito ao contrário de uma atitude passiva, o que é indispensável, de nossa parte, é uma ação constante e decisiva; porque o Senhor, cujo Poder é a única força capaz de realizá-la, não o pode fazer, entretanto, sem o nosso assentimento e sem a nossa cooperação.
É preciso que queiramos realmente nos regenerar; é preciso que nos esforcemos para isso; porque só assim o Senhor pode criar em nós uma vontade nova sem violar o nosso livre-arbítrio, sem destruir a nossa personalidade.
Que meios empregaremos para dar ao Senhor a possibilidade de nos regenerar? Esses meios são as verdades que Ele nos oferece em Sua Palavra. São as verdades que nos fazem ver a natureza má de nossos sentimentos, são as verdades que nos mostram com o combater esses sentimentos, são as verdades que nos apontam o caminho do bem. “O primeiro passo, portanto, no caminho do bem é procurar a verdade, e procurá-la na sua verdadeira fonte que é a Palavra do Senhor”.
Providencialmente, desde que começamos a fazer uso da razão, nos vão sendo ministrados conhecimentos da verdade. Esses conhecimentos vão sendo armazenados em nossa memória — na memória de nosso homem externo — para serem utilizados oportunamente. Mais tarde acrescentaremos a esses conhecimentos recebidos por intermédio de nossos pais e de nossos mestres, novos conhecimentos por nós mesmos hauridos diretamente na Palavra.
Não basta, porém, encher a memória de conhecimentos da verdade para abrir a nossa vontade à ação renovadora do Senhor. É preciso, além disso, elevar esses conhecimentos da memória ao nosso entendimento, à nossa razão. É preciso raciocinar sobre eles e procurar compreendê-los, compreender a sua significação, o seu alcance e a sua aplicação na vida prática. Mas a nossa tarefa ainda não se completa com esse esforço intelectual para entender a verdade; temos que ir adiante, continuando a elevar dentro de nós esses conhecimentos da memória de nosso homem externo, que é a nossa terra, até que eles atinjam o céu de nosso amor. Conhecidas e compreendidas, as verdades precisam ser amadas também.
Só depois que amamos as verdades que conhecemos e compreendemos, é que elas começam a ser realmente úteis à obra da regeneração. “Só as verdades amadas é que são praticadas”. Enquanto permanecem simplesmente no homem natural — na terra de nosso ser espiritual — na memória apenas, elas não têm valor algum para nós, não tem qualquer utilidade para o nosso progresso espiritual. A verdade só tem valor, só é útil quando a amamos, porque só assim nos decidimos a praticá-la. Assim, as verdades — os anjos de Deus em nossa mente — para serem realmente úteis, precisam primeiro ascender de nossa memória, isto é, de nosso homem externo, ao nosso amor, ao nosso homem interno; e depois descer novamente ao externo para serem aplicadas à nossa conduta.
Assim, a escada de Jacó é um símbolo maravilhoso de nossa regeneração. Os anjos que subiam por ela são as verdades da Palavra ascendendo de nossa memória ao nosso amor. Os anjos que desciam, são essas mesmas verdades descendo de nosso amor para serem aplicadas à nossa conduta, ao combate de nossos males. São os mensageiros do Senhor descendo para realizar a obra de nossa regeneração. Sem essa ascensão dos anjos de Deus, a nossa regeneração seria impossível. Sem que procuremos elevar as verdades dentro de nós, sem que as compreendamos e as amemos, não há possibilidade do Senhor fazê-las descer para renovar a nossa vida e criar em nós uma nova vontade.
“Ninguém se regenera só por conhecer a verdade. Isso constitui apenas o passo inicial na estrada da regeneração. Para prosseguirmos por essa estrada, é preciso interesse, é preciso amor pela verdade”.
Somente o Senhor tem poder para criar uma vontade nova em nós, mas somente com o nosso consentimento e a nossa cooperação é que Ele pode realizar essa obra. E a nossa cooperação consiste em procurar a verdade de Sua Palavra, raciocinar sobre ela para compreendê-la e, depois, praticá-la, isto é, empregá-la em nossa vida e amá-la. O Senhor nos diz em João: “Se me amais, guardai os meus mandamentos” (João, 14,15). “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor” (João 15,5).
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Jacó — que representa o homem natural — teve este sonho quando, partindo de Bersebá para Haram, dormiu em um lugar porque já o sol era posto. Todos nós temos que fazer uma viagem semelhante para iniciarmos o processo da regeneração.
Bersebá significa a verdade natural, a verdade da letra da Palavra. Harã significa o bem natural. Partir de Berserbá para Harã significa partir da verdade natural para o bem natural. Por outras palavras: partimos de Bersebá para Harã quando começamos a aplicar na vida os conhecimentos da verdade que aprendemos na letra da Palavra. O bem que então praticamos é um bem inferior, ainda muito misturado com sentimentos egoísticos, mas já é um primeiro passo para o renascimento espiritual.
“E Jacó chegou a um lugar onde passou a noite, porque já o sol era posto”. O lugar a que Jacó chegou representa o estado a que atinge o homem natural quando aplica os conhecimentos da letra da Palavra quando à vida. Esse estado ainda é obscuro; a luz que essas verdades nos dão ainda não é suficiente para dissipar as trevas de nossa ignorância espiritual, e por isso o nosso texto diz que “Jacó passou aí a noite, porque já era posto o sol”. A pedra da qual ele fez travesseiro representa um sistema de verdades da letra da Palavra sobre o qual repousa o nosso entendimento, nessa primeira fase da regeneração. Esse repouso ou tranqüilidade todos nós sentimos no início da regeneração, logo que começamos a aplicar as verdades à nossa conduta. Todo homem natural sente-se satisfeito e tranqüilo quando cumpre os seus deveres, obedecendo à letra dos mandamentos.
A intranqüilidade, o desassossego e as lutas vêm depois quando surgem as tentações espirituais na segunda fase da regeneração. O conhecimento da verdade, a princípio, nos dá muita alegria e segurança. Quando, porém, ela começa a descobrir os nossos erros e males, essa alegria e segurança desaparecem, porque os nossos maus sentimentos se levantam para combater a verdade que os condena. Começam então as tentações, os combates espirituais, sem os quais não há possibilidade de regeneração.
Jacó, repousando neste lugar, estava ainda nesse estado de tranqüilidade que precede as lutas da regeneração. É nesse estado que ele tem o sonho da escada com os anjos subindo e descendo. Este sonho é uma antevisão, uma profecia da regeneração que deve vir em seguida. E é também um símbolo da forma porque ela se processa. É no estado de tranqüilidade resultante do cumprimento do dever, da aplicação dos mandamentos à vida, que temos a antevisão de nosso renascimento espiritual, e nos é revelado o processo de sua execução.
A escada significa a comunicação entre o nosso externo e o nosso interno; entre a nossa terra e o nosso céu. É por esta comunicação que as verdades aprendidas na letra da Palavra — os anjos de Deus — ascendem da memória ao amor, passando pelo entendimento racional. É por essa mesma comunicação que as verdades compreendidas racionalmente e amadas, descerão como princípios de vida para completar, no homem externo, a obra de nossa renovação espiritual. E o Senhor está em cima dessa escada, cujo topo toca o céu — o céu de nosso homem espiritual, o íntimo de nosso ser, onde o Senhor habita em nós. É nesse íntimo que se encontram as relíquias celestiais com que o Senhor nos dotou na primeira infância. É daí, desse íntimo, e é por meio dessas relíquias que o Senhor dirige e efetua a obra de nossa regeneração.
Quando essa obra se realiza, o Senhor se revela a nós como o Deus de Abraão e o Deus de Isaac, isto é, como Divino Amor e Divina Sabedoria. Abraão simboliza o Divino Celeste que é o Divino Amor, e Isaac o Divino Espiritual que é a Divina Sabedoria. A terra que o Deus de Amor e Sabedoria nos dará vem a ser o nosso homem natural regenerado. A regeneração começa pelo homem interno e desce depois ao homem externo; é só quando este está regenerado que ela se completa. E quando a regeneração atinge o homem natural então as verdades da fé serão nele como os bens da caridade. “A tua semente será como o pó da terra”. A semente representa a verdade e o pó da terra os bens da caridade em grau natural. E essas verdades e esses bens se estenderão indefinidamente, “do ocidente ao oriente”, e “do norte ao sul”. As palavras ocidente e oriente se referem ao amor ou à caridade; e as palavras norte e sul à verdade ou à fé.
Quando o homem completa a sua regeneração as boas afeições se multiplicam nele, estendendo-se a todos os graus de sua vontade: do ocidente, que é o grau inferior, ao oriente, que é o grau supremo do amor celestial. Semelhantemente, acontece com as verdades, que se espalham e multiplicam em todos os graus de seu entendimento, indo do norte, o grau inferior, ao sul, o grau supremo da sabedoria humana. Nesse estado, todos os conhecimentos da doutrina estão unidos aos bens correspondentes, não havendo mais verdades sem aplicação à vida. Isto está simbolicamente descrito nas palavras: “e em ti e tua semente serão benditas todas as famílias da terra”.
Em conseqüência, o Senhor estará conosco e a sua Divina Providência velará por nós para que jamais voltemos a ser assaltados pelo mal; cumprindo-se assim os desígnios do Divino Amor a nosso respeito. “E eis que estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores; e ter farei tornar a esta terra; porque te não deixarei, até que te haja feito o que te tenha dito”.
E quando isso acontece, acordamos para a vida espiritual, saindo definitivamente da obscuridade e do torpor da vida no estado natural em que teve início a nossa regeneração. A compreensão da presença do Senhor torna-se então mais completa e exclamamos como Jacó, saindo do seu sono: “Na verdade o Senhor está neste lugar, e eu não sabia”. O temos de Jacó quando acordou e reconheceu que estava em lugar santo, representa o nosso estado de humildade diante da majestade Divina, quando chegamos a compreendê-la, exclamando: “Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos Céus”. Quando a obra de nossa regeneração se completa, estamos prontos para entrar na casa de Deus; estamos diante da “porta do céu”.
É por meio daqueles que se regeneram que o Senhor transmite a luz de Sua Verdade ao mundo; luz que precisa resplandecer diante dos homens para que vejam as boas obras dos que cumprem os mandamentos do Senhor e “glorifiquem o Pai que está nos Céus”.
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Em conclusão: a obra suprema de toda a nossa vida, a obra pela qual nos preparamos para ingressar no Reino de Deus onde gozaremos a bem-aventurança eterna a que Ele nos destinou, a obra que nos trará a paz interna e a verdadeira felicidade, a obra, enfim, de nossa regeneração, é inteiramente realizada pelo Senhor, quando procuramos a verdade em Sua Palavra e na Doutrina Celeste que Ele deu à Sua Nova Igreja, e nos esforçamos por aplicá-la à nossa vida no mundo.
O Senhor dirige e executa a renovação de nosso ser espiritual sempre que fazemos com que as verdades recebidas na memória ascendam à nossa mente racional e daí subam ao nosso amor, de onde o Senhor as fará descer, como princípios de vida, aos atos de nossa conduta externa; subindo e descendo como os anjos da escada de Jacó — a escada que estabelece a comunicação entre o nosso externo e o nosso interno, por onde nos vem a vida que recebemos do Senhor.
“Eis uma escada que era posta na terra, cujo topo tocava os céus, e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela”.
Amém.

•   1ª Lição:     Gênesis 28, 10-17
•   2ª Lição:     Mateus 5, 13-16