A CHAVE DE DAVI


Sermão pelo Bispo George de Charms


“E ao anjo da Igreja que está em Filadélfia, escreve: Isto diz o que é santo, o que é verdadeiro, o que tem a chave de Davi; o que abre e ninguém cerra, e cerra e ninguém abre”.

(Apocalipse 3,7)


O Senhor é o único Redentor, o único Salvador da humanidade. Sabemos isso pelos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Doutrina Celeste, muitas vezes repetidos. Nos momentos de dor e de tentação, com a consciência de nossa própria fraqueza, voltamo-nos para Ele, procurando auxílio; oramos a Ele, levados pela fé que nasce desses conhecimentos, a que se junta alguma coisa que recebemos por percepção.
Esta percepção é vaga e mal definida; constitui, entretanto, uma base sólida para a confiança, para a esperança e para a paz interior. Esta percepção é vaga porque, embora saibamos, e de coração acreditemos, que o Senhor está presente com o poder do Infinito Amor e da Infinita Sabedoria para nos proteger e salvar é, porém muito pouco o que sabemos sobre a realização dessa obra Divina e sobre a redenção do espírito humano pelo Senhor.
Os ensinamentos que nos dão a segurança de que o Senhor, Homem Divino, Deus Infinitamente Humano, vela sobre nossa vida com incessante solicitude, guiando o nosso destino, momento a momento, dia a dia, para o alvo final do uso e da felicidade eterna, esses mesmos ensinamentos declaram que uma medida igual de amor, um mesmo grau de vigilância e de cuidado é dispensado pelo Senhor a todas as Suas criaturas.
No entanto, vemos por toda parte, em torno de nós, demonstrações de desigualdade. As coisas que aos olhos dos homens constituem os meios de proteção Divina, de bem-aventurança espiritual, não são dadas na mesma proporção a todos eles. Há desigualdade nos dotes mentais e físicos, na capacidade intelectual, na sensibilidade espiritual com que nascem os homens; tendo uns, oportunidades que outros não possuem. As circunstâncias que condicionam a formação e preparação dos homens, a sua herança social, a sua situação econômica, o seu fundo cultural e educacional, todos os meios, enfim, que parecem essenciais ao desenvolvimento humano, diferem profundamente de homem para homem. Por falta de recursos materiais, muitos parecem injustamente prejudicados, enquanto que a outros é prodigalizada uma grande abundância de benefícios materiais e espirituais.
Como conciliar esta desigualdade com a concepção de Deus — nosso Pai — amando com amor infinito todas as criaturas e possuindo o poder infinito de difundir a Sua vida igualmente sobre todas elas? A mente natural do homem, em séculos de elucubrações filosóficas, não achou resposta para isso. Sempre pareceu ao homem que os caminhos de Deus eram desiguais. Somos sempre tentados a argumentar contra o que imaginamos ser uma manifesta injustiça Divina. Em sua Palavra o Senhor nos dá, entretanto, uma resposta conveniente no que diz respeito à salvação, quando diz:
“Se o homem for justo e fizer o que é legítimo e direito, (...) caminha nos meus estatutos e guarda os meus juízos para agir retamente; se ele é justo, viverá seguramente, diz o Senhor Deus. (...) A alma que pecar, morrerá (...) Mas se o mau se afastar de todos os seus pecados (...) e fizer o que é legítimo e direito, seguramente viverá. (...) Ouve, ó casa de Israel, não é o meu caminho igual? Não são os teus desiguais? (...) Eu não tenho prazer na morte do que morre, diz o Senhor Deus, portanto volta e vive” (Ezequiel 18, 5,9,20,21,25,32).
A religião tem dado a muitos uma fé firme na eterna justiça de Deus, uma fé baseada no claro ensinamento da Sagrada Escritura, reforçada pela percepção afirmativa de que esse ensinamento é verdadeiro. Contudo, as aparências contrárias são tão fortes e a nossa compreensão da Divina Providência é tão imperfeita que somos tentados, às vezes, a considerar a nossa fé como um ideal vão, em desacordo com as realidades da vida. É, entretanto verdade que o Senhor está presente em cada um de nós com infinito poder e infinita vontade para nos salvar.
No processo da salvação, porém, Ele age tendo em vista não os fins temporais,  mas os fins eternos. E aqui está o segredo de nossa incompreensão. É pelo fato destes fins permanecerem, providencialmente, fora do nosso alcance que os caminhos do Senhor nos parecem estranhos e difíceis de compreender. Até certo ponto, porém, a compreensão dos métodos Divinos é possível, agora, como nunca o foi antes; porque alguma coisa deles nos foi revelada e muitíssimo mais podemos descobrir da Palavra agora aberta para nós. Aí podemos ver que o Senhor tem poder para salvar todos os homens e que nenhuma circunstância de nascimento, de meio ou de educação pode invalidar o trabalho da Divina Providência. E isso Ele mesmo o declara em Sua linguagem inconfundível: “Eu sou Aquele que vivo e fui morto, e eis que vivo para todo o sempre, amém; e tenho as chaves do inferno e da morte” (Apoc. 1,18). E ainda nas seguintes palavras do mesmo texto: “Isto diz o que é santo, o que abre e ninguém cerra e cerra e ninguém abre” (idem 3,7).
O Senhor mantém em Suas mãos a chave do destino espiritual de cada um de nós, a despeito de todas as desigualdades em que vivemos. O que vem a ser essa chave? Visto que o Senhor a possui e ama igualmente a todos os homens, porque então não salva a todos?
A imagem da chave é usada em várias passagens da Palavra, porque a mente humana é comparada, em seu conjunto, a uma casa com as suas paredes, portas, janelas, salas, quartos etc. Como há dois mundos e o homem foi criado para viver em ambos; vivendo conscientemente, por algum tempo em um e, depois, para sempre, no outro. A casa da mente é dupla e tem duas entradas, duas portas: uma, abrindo para o mundo da natureza e a outra para o espírito. Pela porta que dá para o mundo exterior entra o afluxo dos sentidos, trazendo os conhecimentos e a experiência. Pela porta que abre para o mundo interior vem, das sociedades de anjos e espíritos, o influxo dos desejos, das afeições, dos amores.
Toda a vida mental é o resultado do encontro dessas duas correntes. Sem afeição, nenhuma sensação do mundo exterior fará impressão sobre a nossa consciência. Sem sensação, nenhum amor pode ser percebido, porque nada encontra em que se corporifique de modo tangível. A vida do homem depende da abertura conjunta dessas duas portas: a do interior e a do exterior, para que haja percepção das vivas experiências dos dois mundos. É a chave destas portas — a do afluxo e a do influxo — que se denomina a “chave de Davi”. O poder de abri-las ou de fechá-las pertence ao Senhor somente, que assim controla todas as impressões de nossa mente, todos os meios de formar o nosso caráter e, deste modo, determinar o nosso destino eterno.
É preciso que se saiba, porém, que a imagem de uma porta, como toda comparação e correspondência natural, é incompleta. A mente humana não é exatamente uma casa. É muito mais do que isso. É um organismo vivo e altamente complexo. Os caminhos que vão levar a ela são múltiplos. Há, na realidade, inúmeras portas, abrindo para o mundo exterior, a cada uma das quais corresponde outra, dando para o mundo do espírito. Há os cinco sentidos que podem ser diversamente combinados, abrindo de muitas maneiras diferentes, cada uma das quais levando à mente uma mensagem nitidamente diferente das demais.
Podemos, por exemplo, encarar o mesmo objeto por motivos muito variados, tirando de sua observação idéias inteiramente diferentes, conforme o modo de encará-lo e o sentido, ou combinação de sentidos, que empregamos para isso. Podemos encará-lo com olhos de artista, observando a beleza de sua forma; podemos encará-lo sob o ponto de vista científico, tomando conhecimento de sua estrutura e qualidades físicas; podemos, ainda, considerá-lo sob o ponto de vista utilitário, fixando nossa atenção sobre os proveitos que dele podemos tirar conforme o fim que temos em vista. Em cada caso, a imagem impressa na mente é completamente diferente das demais, porque em cada caso, uma porta diferente foi aberta para a consciência. Semelhantemente, há muitas portas internas, abrindo cada uma para alguma sociedade determinada do céu ou do inferno; cada uma admitindo para a mente uma afeição ou amor particular que, a seu turno, abre a porta da sensação correspondente. Há miríades de portas de que não temos consciência e que não temos o poder de abrir devido à nossa ignorância. O Senhor, somente, conhece e guarda a chave de cada porta.
Ademais, é preciso não esquecer que há amores que são diametralmente opostos, por serem mutuamente destrutivos como, por exemplo, os amores do céu em relação aos do inferno. As portas de entrada desses amores opostos não podem ser abertas ao mesmo tempo. O Senhor mesmo disse: “Um homem não pode servir a dois senhores; porque ou odiará a um e amará o outro, ou bem se ligará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon” (Mateus 6,24). “Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir” (Lucas 1,17). A abertura da porta para o influxo celeste, automaticamente fecha a porta para o inferno e vice-versa. As duas não podem ser abertas simultaneamente, mas sim alternativamente, o que constitui o fundamento e a base da salvação do homem.
Nenhuma circunstância externa, nenhuma condição do meio, por si próprio, pode determinar o destino espiritual do homem, porque as idéias e impressões oriundas das influências do meio tomam na mente, a qualidade do amor ou da afeição que lhes abre a porta. Esta lei nos faz compreender, até certo ponto, como o Senhor controla completamente o nosso mundo interno, utilizando as chaves das portas do influxo. Quando um amor celeste domina a mente, o mal é impotente para entrar. Se então nos deparamos com coisas más, ou não as notamos, ou as rejeitamos, afastando-se a mente para a contemplação de coisas em harmonia com o amor interno que nos domina, acontecerá que o bem fechará as portas ao mal.
É este o segredo da proteção da inocência, descrito em Isaías:           
“O lobo morará com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho do leão, e o animal cevado andarão juntos, e uma criancinha os conduzirá. E uma criança de peito brincará sobre o buraco da áspide, e a criança desmamada porá a mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em nenhuma parte de todo o monte de minha santidade” (Isaías 11, 6,8-9).
Quando as janelas do céu — as portas do influxo das sociedades celestes — estão abertas, os maus espíritos fogem, ficam impossibilitados de se aproximar, perdem a sua influência. O poder de proteger o homem por este modo, mesmo no meio do inferno, contra qualquer lesão espiritual, é o fundamento interno da Redenção Divina.
Por que então não são salvos todos os homens? Porque embora o Senhor guarde a chave de cada influxo espiritual e, por isso, tenha o poder de atuar sobre o influxo do mundo natural de modo a impedir que as circunstâncias externas venham a prejudicar a regeneração do homem, há, contudo, um fator — e um único — que pode interferir com a vontade do Senhor de redimir e de salvar a todos. Este fator é o nosso livre-arbítrio, que a Divina Providência mantém íntegro, protegendo-o contra qualquer influência externa. Se os homens pudessem ser salvos só por um ato arbitrário de Deus, o mal e o inferno nunca teriam existido. A vontade do Senhor é dar a Sua vida aos homens, de modo, porém, que eles se sintam como propriamente deles. Ora, o homem não pode sentir como propriamente sua coisa alguma que receba por compulsão, isto é, constrangido, obrigado.
O céu é um estado de livre recepção e de livre retribuição do amor e da sabedoria do Senhor; e não pode haver liberdade de recepção onde não há liberdade de rejeição. O Senhor possui a chave do influxo. E ora abre a porta para a entrada de uma afeição celeste, para que o homem sinta e conheça os prazeres do céu; ora abre a porta ao influxo infernal, para que os prazeres do inferno sejam também conhecidos. Isso é feito com infinita sabedoria, com infinito conhecimento do estado do homem, abrindo somente as portas por onde se pode fazer na mente um estado de equilíbrio e mantendo fechadas todas aquelas por onde poderiam penetrar influxos destruidores desse equilíbrio, o que arrastaria o homem inevitavelmente num ou noutro sentido.
A situação em que o homem pode fazer uma comparação e estabelecer o contraste entre aqueles dois prazeres perfeitamente equilibrados, é a única compatível com a liberdade humana. E é também a única em que, segundo a Ordem Divina, ele tem a possibilidade de receber a Vida Divina como propriamente sua, e assim entrar para sempre nos usos e gozos do céu. Por outro lado é também a situação em que o homem pode rejeitar aquela vida e, por sua própria escolha e no uso de sua liberdade, fazer sua morada no inferno.
Todo o processo da salvação está, pois, nas mãos do Senhor, em Seu poder para controlar, pelo Divino conhecimento das necessidades espirituais de cada um de nós, as correntes do influxo. Ele não age, porém, arbitrariamente. Não há também possibilidade de uma ação instantânea. A salvação é um processo gradual pelo qual o Senhor, mantendo o homem em liberdade, permite-lhe escolher a parte do mundo espiritual em que quer viver, os espíritos e anjos com que deseja associar-se, dando-lhe o poder de fazer essa escolha, como por si mesmo, e determinar assim a qualidade do próprio meio, tanto neste como no outro mundo. O poder para manter essa liberdade do espírito humano, o Senhor assumiu por Si mesmo, pelo advento no mundo, por Sua vida na terra, por Sua luta contra os infernos, por Sua vitória sobre eles e pela glorificação do Seu Humano que os sujeitou para sempre à Sua vontade. É Ele — o Senhor ressuscitado — que mantém em Sua mão as chaves do inferno e da morte. “Isto diz o que é santo, o que é verdadeiro, o que tem a chave de Davi, o que abre e ninguém cerra e cerra e ninguém abre”.
Este Divino Humano é o Deus que nós adoramos, que está constantemente presente, movendo secretamente os nossos corações, sempre pronto a responder às preces do espírito que traduzem a nossa vontade de recebê-l’O, trabalhando com infinita paciência, cada dia e cada hora, para salvar a nossa alma da morte eterna e impedir a nossa queda. Na medida exata em que desejamos livremente aceitar Sua Divina direção, resistindo aos prazeres do inferno, evitando os males como pecados contra Ele, exatamente nessa medida, Ele abrirá em nós “as portas eternas para que o Rei da Glória possa entrar”. Disso temos a garantia Divina, porque Ele mesmo disse:
“Ele veio para o que era Seu, e os Seus não o receberam. Mas a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, os que crêem no Seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus”.
Nos desígnios de Deus, embora haja uma variedade infinita, embora não se encontrem dois homens com os mesmos dotes ou as mesmas oportunidades materiais, a todos, entretanto, são dadas oportunidades iguais de regeneração e “ninguém é perdido, salvo o filho da perdição, para que a Escritura se cumpra”. “As portas da Cidade Santa não se fecharão de dia, porque ali não haverá noite”.
Sejam quais forem as aparências, para nós que olhamos apenas o lado externo das coisas, que somos incapazes de ultrapassar a superfície e perceber as realidades da alma, o Senhor conserva sempre aberto para todos os homens, o caminho do céu; para todos os que de coração querem deixar de fazer o mal e aprender a fazer o bem. Para estes, Ele disse: “Eu conheço teu trabalho: eis que ponho diante de ti uma porta aberta, e ninguém pode fechá-la”.


Amém.

•   1ª Lição:     Ezequiel 18
•   2ª Lição:     Apocalipse 1
•   3ª Lição:     A. E. 536