Vontade de ser salvo


Sermão pelo Rev. Kurt H. Asplundh

“Queres ficar são?”


 (João 5:6)

A cena no poço de Betesda era curiosa e tocante. Fora dos muros de Jerusalém, próximo ao portão do lado ocidental da cidade, havia um pequeno  e tranqüilo poço de águas. Em si, era um poço igual aos vários reservatórios que havia à volta da cidade, para abastecer de água a população. O poço de Betesda, porém, era diferente de todos os demais porque ali as águas tinham um poder notável de curar. Por esta razão, o nome era “Betesda”, que quer dizer “casa da misericórdia”.
As curas no poço de Betesda aconteciam em ocasiões imprevisíveis, quando a superfície da água, normalmente tranqüila, se agitava. Quem entrasse primeiro no poço, depois de águas terem sido assim agitadas, era curado de qualquer doença ou aflição que tivesse. Como não havia intervalo certo de tempo entre tais ocorrências, e como também não havia maneira de se saber quando o anjo de Deus iria descer par agitar as águas de Betesda, o povo que buscava curas ficava simplesmente esperando ao lado do poço. Por isso, em qualquer ocasião que ali se chegasse, podia se encontrar uma multidão de cegos, mancos e ressicados, esperando pelo movimentos das águas.
Aquelas pessoas, que tinham já desistido de qualquer outro meio de cura, concorriam entre si, precipitando-se para serem a primeira a entrar nas águas quando se movesse, pois somente esse teria sua saúde restaurada. Para os que chegassem depois, não havia outra coisa a fazer senão esperar por outra oportunidade.
Cinco pavilhões tinham sido feitos em volta do poço de Betesda, para abrigar os que esperavam a cura. E eles estavam lotados de homens e mulheres, que permaneciam ali por dias e dias, às vezes com apenas um fio de esperança de entrarem na água primeiro e receberem a cura.
Um daqueles que estavam esperando em Betesda, “a casa da misericórdia”, estava enfermo há trinta e oito anos. Era paralítico e jazia num estrado, em um dos pavilhões. Por causa de sua paralisia, não podia se mover, evidentemente. E como não tinha ninguém para ajudá-lo a alcançar o tanque, não tinha a mínima chance de ser o primeiro a entrar nas águas.
Esse foi o homem que o Senhor Jesus notou quando passava por ali, indo a Jerusalém, para a um dos dias festivos. Era sábado. O Senhor viu o homem e sabia há quanto tempo estava enfermo. É digno de se notar, portanto, que o Senhor, vendo o homem no leito de desesperança, tenha-lhe dirigido a pergunta: “Queres ficar são?”
Não havia dúvida que o homem queria ser curado. Por que, então, estaria ali no lugar de cura? A pergunta do Senhor parecia desnecessária. No entanto, sabemos que cada sentença Divina, cada palavra por Ele proferida, tinha sua razão e sua importância. Assim, o significado da pergunta: “Queres ficar são?”, não evidente no relato literal, torna-se plenamente claro quando desvendamos o conteúdo espiritual da narrativa.
O enfermo é o homem. A enfermidade ou paralisia, é uma invalidez espiritual e não natural. Quando pensamos assim, a pergunta do Senhor ganha um novo sentido: “Queres ficar são?” é o que Ele pergunta a cada um de nós: “Queres ser salvo?”
Esta é a questão mais importante e mais necessária quando se relaciona com nosso estado espiritual. O Senhor não poderá nos salvar ou nos ajudar espiritualmente a menos que nós queiramos que Ele o faça. Quando amamos os males e esses males dão os prazeres de nossa vida, não queremos realmente ser removidos deles. Ser “salvo” dos males, nesse caso, poderia parecer mais uma maldição do que uma bênção [porque seria sermos afastados daquilo de que gostamos]. Por isso, a primeira coisa que deve ser determinada em nossa salvação é se nós queremos ou não, sinceramente, ser libertos do mal. Freqüentemente não queremos.
O fato de um homem enfermo ficar nessa condição por um período tão longo de tempo ¾ trinta e oito anos ¾ pode indicar que talvez ele tenha tido suficiente desejo de ficar são. Afinal, não é assim em nossas vidas, com as coisas que vamos adiando indefinidamente?  Aquelas que mais deixamos para depois são as que achamos menos importantes. Muitas vezes, é mais fácil ignorar e negligenciar uma situação imprópria em nossas vidas do que enfrentar a situação e fazer alguma coisa sã a respeito.  Assim, ficamos prostrados em nossos leitos, por assim dizer, sofrendo a enfermidade espiritual.
É o caso, muitas vezes, em nossos estados espirituais. Os demônios confessaram a Swedenborg que preferiam “mil vezes antes viver dentro do que fora dos infernos” (DE 5830). A pessoa, na terra, tem a oportunidade de ser tirada de males que a aprisionam e dominam sua vida, a fim de ser introduzida em um estado de prazer e bem, mas prefere jazer em sua condição enferma, sem mudança.
Para a pessoa que aceita ser livrada do mal, a obra se faz gradualmente, pela Divina misericórdia do Senhor. Podemos ver alguma coisa a este respeito pelas pessoas que eram curadas no tanque de Betesda. “Betesda”, como já se disse, quer dizer “casa da misericórdia”.  E, sem dúvida, as curas miraculosas que aconteceram no tanque eram um sinal da misericórdia do Senhor. O que, porém, nos faz admirar era por que a misericórdia do Senhor era tão escassa, tão contada. Por que ¾ indagamos ¾ apenas uma única pessoa da multidão enferma era curada cada vez que a água era agitada por um anjo. Onde está a misericórdia, permitir que apenas um emergisse do tanque curado, enquanto todos os outros saíam amargamente desapontados, para nova espera?
A grande multidão de cegos, mancos e ressicados significa a grande multidão dos estados de nossa vida em que estamos igualmente cegos, mancos ou ressicados espiritualmente. Nossas mentes são povoadas por uma multidão assim de situações em que estamos espiritualmente inválidos. Podemos ter paixões cegas, intenções mancas ou aleijadas, e experiências amargas e ressicadas que são sérios empecilhos em nossa edificação espiritual.
O Senhor quer nos curar de tais coisas, tornar sãs nossas vidas. Mas Ele só pode isso gradualmente, à medida que nós quisermos ser curados e mostrarmos essa vontade através de um esforço real de nossa parte.  Uma a uma é que essas situações espirituais serão curadas. A cura é concedida a cada situação em nossas vidas em que, por nossos esforço,  atingimos as águas.  Pelas correspondências, vemos que nossos males são removidos assim, um a um; e que os primeiros a serem removidos serão aqueles que pusermos primeiro à nossa frente, para exame, julgamento e correção.
Um fato espiritual é que nós não poderíamos suportar uma salvação “instantânea”, com a imediata remoção de todos os nossos estados infernais. Lemos nos Escritos: “Havia alguns que, no mundo, tinham acreditado na salvação operada em um só momento por misericórdia imediata, e que, quando se tornaram espíritos, quiseram que seu prazer infernal ou seu prazer do mal fosse pela Onipotência Divina, e ao mesmo tempo pela Divina Misericórdia, mudado em prazer celeste ou em prazer do bem; e como o desejassem ardentemente, foi mesmo permitido que isso fosse feito pelos anjos, que então lhes tiraram o prazer infernal; mas imediatamente esses, porque esse prazer era o prazer do amor de sua vida, por conseqüência sua vida, caíram como mortos, sem nenhum sentimento e sem nenhum movimento, e não foi possível lhes insuflar uma outra vida senão a sua, porque todas as coisas de sua mente e de seu corpo, que haviam sido voltadas para trás, não puderam ser reviradas em sentido contrário. Por isso, foram trazidos à vida pela introdução do prazer de suas vidas. Depois eles disseram que naquele estado tinham sentido interiormente algo cruel e horrível, que não quiseram dar a conhecer. É por isso que no céu se diz que é mais fácil mudar uma coruja em pomba, e uma serpente em cordeiro, do que um espírito infernal num anjo do céu”.
Por essa razão, é da misericórdia do Senhor que a mudança de homem infernal em anjo do céu se dê de modo gradual, de acordo com a liberdade do homem e a vontade que ele tem de ser salvo. Assim, o evento de uma única cura no tanque de Betesda nos dão uma imagem mais real da ação da misericórdia do que se ali tivesse havido curas em massa. E ainda que ali, em Betesda, a dura competição para se entrar na água primeiro, a espera angustiante e a amargura da decepção pareçam coisas cruéis, quando o significado espiritual daquele evento é conhecido, a lei da misericórdia Divina brilha.
As águas calmas do tanque significam as verdades da Palavra quando, inativas, ficam em repouso em nossa mente. Tais verdades não têm nenhum poder curativo em nossa vida espiritual. Mas quando recebem vida, isto é, quando são agitadas por um anjo, ganham um poder efetivo de salvar. Os Escritos nos ensinam que as águas agitadas significam a “vivificação por meio do reconhecimento e da fé” (AC 10083). Em primeiro lugar deve vir o conhecimento. Mas não existe vida Divina no mero conhecimento. A pessoa pode conhecer muitas verdades da Palavra, pode armazená-las aos milhares na memória e, no entanto, não ser transformado por elas. São como as águas do tanque que permanecem paradas. A primeira coisa da vida Divina é, portanto, não o conhecimento, mas o reconhecimento. Quando se é levado a reconhecer que o Senhor é o Salvador do mundo, que Ele veio ao mundo e que assim tem o poder de curar e salvar, então é que as verdades que estão na memória ganham vida. É como o anjo agitando as águas.  E quando, pelo reconhecimento e pela fé que nasce do reconhecimento, aplicamos a verdade Divina aos nossos estados do mal, essas verdades da fé efetuam operam a purificação. É essa cura espiritual que é significada pelas curas que ocorriam no tanque de Betesda.
Todavia, o caso do homem que estava enfermo há trinta e oito anos era diferente. Incapaz de alcançar as águas antes dos outros, ele não tinha esperança alguma de se livrar de tão antiga enfermidade. Não tinha ninguém que o ajudasse a entrar nas águas do tanque.
Foi neste ponto de desespero do paralítico que o Senhor o encontrou a caminho de Jerusalém. O Senhor era a pessoa que aquele homem esperava. E quando o Senhor encontra desejo de salvação ¾ a vontade de se salvar ¾ Ele dá a ordem: “Levanta, toma teu leito e anda”.
O paralítico jazia no seu estrado, o leito típico daqueles dias. Era como uma maca que podia ser tomada e levada facilmente para qualquer lugar. A despeito de sua pobreza, esse leito ou estrado, significa a doutrina. A “cama” significa doutrina por causa de sua correspondência, “porque assim como o corpo repousa na cama, a mente repousa em sua doutrina. Mas pela “cama” é significa a doutrina que cada um adquire para si seja da Palavra, seja de sua própria inteligência, porque ali a mente repousa e, por assim dizer, dorme” (AR 137).
O Senhor mandou que o paralítico fizesse três coisas: primeira: levantar; segunda: tomar o leito: e terceira: andar. O que o Senhor o mandava agora fazer contrastava inteiramente com o que ele até ali tinha estado fazendo; ele tinha estado estendido em seu leito, sem se mover.
Nessa atitude, o homem está completamente desvalido. Os pecados fazem que a criatura humana permaneça assim por tempo tão longo.
O mal pode, de fato, reduzir espiritualmente a atividade do homem, fazê-lo reduzir sua utilidade, seu desempenho de usos espirituais. O pecado é o mal que o paralisa em todo esforço e desejo de produzir o bem.
O egoísmo, a inveja, a desconfiança e o ódio privam o homem da oportunidade de compartilhar os usos do reino dos céus. Enquanto os males reinarem na mente, o homem jaz estendido no leito de suas próprias idéias falsas e princípios tolos, que não têm nenhum valor celeste, mas servem apenas como base de argumento sobre o qual o homem repousa, acomodado com seu maus amores.
Por isso, o homem deve se levantar de tais doutrinas. Sua mente deve se elevar do mal para o bem. Esta é a primeira coisa que o Senhor nos manda fazer, uma vez que nosso desejo de sermos salvos é real. “Levanta!”  Ergamo-nos dos interesses próprios, que nos debilitam o espírito. Ergamo-nos dos nossos prazeres, para pensarmos nas necessidades de nossos semelhantes. Elevemos nossas mentes acima dos prazeres e atrações vãs do mundo material para nos dedicarmos melhor aos propósitos da vida eterna.
Em seguida, o Senhor nos dá a ordem: “toma teu leito”. Os princípios que antes usávamos como doutrina para nosso comodismo devem ser usados, antes, para promover fins úteis. Na obra “Apocalipse Revelado” lemos que o homem “carregando seu leito e andando” significa “meditar na doutrina”. Essa meditação ou reflexão, quando praticada para fins do uso, são os meios pelos quais poderemos ser retirados dos males, meios esse que o Senhor provê para nós. Esses meios são principalmente “os deleites da meditação, do pensamento e da reflexão por causa dos fins que são os usos; e os fins que são os usos são tantos quanto os particulares e os menos particulares da ocupação e do ofício de cada um” (DP 296).
Finalmente, o Senhor nos manda: “Anda!”.  “Andar” significa “viver” (AC 10360); aqui, particularmente, viver a vida de acordo com a doutrina.
Não basta mudarmos nossa atitude e meditarmos nas boas intenções; fazermos planos e desejarmos fazer boas coisas; não basta querermos prestar usos. Precisamos torná-los reais em nossa vida e ali confirmar nosso novo espirito em nossas maneiras de viver. Pela ação, pela atividade, fortalecemos nossa vontade e nosso amor, e damos testemunho de nossa fé mais enfaticamente do que por qualquer confissão ou por uma multidão de palavras.
Assim foi que, quando o paralítico foi curado e tomou seu leito e andou, ele foi para a cidade, porque mais tarde o Senhor o encontrou no templo, e lhe disse: “Eis que já estás são; não peques mais, para que te não suceda alguma coisa pior” (João 5:14).
Tenhamos na lembrança este milagre de cura e o que ele significa. E quando cairmos nos estados de amargura e murmuração, ou se nos sentirmos desesperançados quanto a nossa salvação, façamos a nós mesmos a pergunta que o Senhor fez ao paralítico: “Queres ficar são?”
Queremos nós realmente mudar nossas vidas ou estamos satisfeitos com nossa atual situação? O Senhor tem poder para nos tornar sãos e íntegros, mas só faz isso com nossa vontade e nossa cooperação. “Levanta, toma teu leito e anda” (João 5:8).
Enquanto permanecermos em estados doentios da mente, sem fazer esforço para nos elevarmos acima de nós mesmos, sem nos empenharmos para andar em direção a estados realmente úteis e produtivos, nossa enfermidade permanecerá, porque, realmente, não teremos ninguém para nos ajudar.
Mas se sairmos de nosso leito habitual de razões e desculpas, de atitudes sem eficácias, para uma vida positiva de uso, o Senhor, o único que pode nos ajudar, entrará em nossas vidas para nos tornar sãos. “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de Seus benefícios; é Ele que perdoa todas as tuas iniqüidades, e sara todas as tuas enfermidades; quem redime a tua vida da perdição, e te coroa de benignidade e de misericórdia... Bendize, ó minha alma, ao Senhor” (Salmo 103:2-4, 22). Amém.

Lições: Salmo 116; João 5:1-16; DP 338:6,7.